PENICHE CAPITAL DA ONDA. E O RESTO?
Por João Pedro Santos. In revista “Sábado”
Outubro 18, 2016
Mão amiga fez-me chegar
este artigo de opinião publicado na Revista “Sábado”. Pelo seu interessante
desenvolvimento, aqui o reproduzo com a devina vénis ao autor.
“O "estar na moda" parece ser uma regra de conduta nos dias
que nos correm por debaixo dos pés, e o surf, está na moda.
Mas começo pelo início como convém para não confundir as certezas de
quem lê e se interessa pelo que nos passa mesmo à frente dos olhos.
Os acasos e desavisos da vida fizeram com que, nos últimos dois anos eu viesse
a assentar arraiais no Baleal, pequeno braço de terra no extremo oriental da
Península de Peniche. Lugar de clima de personalidade imprevisível e
temperamento forte. Lugar único na sua singularidade geográfica. Lugar de uma
beleza capaz de nos prender a esta terra de ondas nascidas do vento e dos
Deuses do mar. Lugar que cativa e agarra. Lugar que cheira a brisa e saudade.
Lugar que é meu e teu também, se alguma vez já tiveste a sorte de por cá andar
e olhar com olhos de ver as Berlengas lá ao fundo por entre as nuvens a
anunciar chuva ou talvez um dia de sol.
Afinal por mais que os dias se repitam nunca se sabe o que o futuro trará por
estas bandas de pescadores, senhores da terra e gentes de prancha debaixo do
braço, sempre dispostas a desafiar a rotina com mais uma dança por entre linhas
sucessivas de ondas, linhas tão perfeitas que te levam a concluir que se calhar
Deus existe mesmo, e tu consegues ouvi-lo falar no incessante desmoronar de
água durante mais um set a desenhar a linha de costa.
Nada de novo para mim, afinal sempre estive por aqui, desde que me
lembro de ser gente em vida, os meus pais são daqui, os meus avós e amigos mais
próximos também. O acaso não fez mais que trazer-me de volta a casa e mesmo que
um dia arranque para outras paragens, a minha alma continuará a olhar o mar
moldar a magia desta terra. Até que um dia regressarei para resgatar o resto de
mim que por aqui ficou. Mas para já estou inteiro. Eu, como tantos que por aqui
vivem agora, e que sabem o valor incalculável que a vista consegue alcançar.
Desculpem-me a seca que vos estou a dar, mas isto tinha mesmo de ser dito para
melhor poderem compreender o que aí vem.
Pois é, voltando ao início, o surf está na moda. Está na moda há já alguns anos
como decerto sabem, nada de novo afinal. E, nestes últimos oito anos, a moda
atinge o seu clímax por esta altura, com uma das etapas do mundial de surf a
realizar-se mesmo aqui à porta de casa, em Supertubos.
Que coisa espectacular! Dirão vocês aí desse lado da internet.
Sim, é giro, respondo eu. Os melhores surfistas da actualidade, grande impacto
mediático, milhares de turistas de olhos claros e cabelos loiros, festas,
multinacionais por todo o lado a exibirem as suas marcas a dizerem-te ao ouvido
que tu podes ter tudo, que tu tens de ter tudo para estares na moda, para seres
como eles (os Pros) para apareceres e seres digno de nota, para te destacares
como alguém que vive "na crista da onda" (ok, perdoem-me a metáfora
barata mas não me ocorreu nada de mais apropriado para o caso).
E foi, segundo estas premissas que ditam os tempos, que o edil local, o Tozé,
como gosta de ser conhecido, diminutivo informal de António José Correia,
presidente da câmara de Peniche, alicerçou o seu legado de Peniche Capital da
Onda. Desde 2009 que o Mundial passa por aqui durante o mês de outubro. E, ano
após ano, o Tozé coloca-se em bicos dos pés por entre risos francos e oferendas
em forma de latas de conservas:
- "Eu vi que isto do surf tinha um potencial do caraças, fui ter com o
Manuel Pinho em 2008 (então ministro da economia) e enquanto comíamos umas
amêijoas num almoço em Olhão consegui vender-lhe esta ideia do surf. Em 2009 já
cá estava o mundial!"
- "Sabe que no mês de outubro o Mundial tem um impacto económico (em
Peniche) superior a 10 milhões de euros e temos dezenas de milhar de
turistas?"
- "Isto antes era um deserto, só arrebitava em agosto e depois
desaparecia. Agora está cheio de surfcamps, hotéis, comércio, vida nocturna.
Peniche está no mapa o ano inteiro!"
Sim, tudo isto pode ser verdade Tozé. Se bem que eu, comum ignorante das lides
políticas, tenha alguma dificuldade em perceber exactamente onde estão e para
onde vão esses 10 milhões de euros de que fala. Mas acredito que existam mesmo,
por isso pergunto-lhe o seguinte, a si Tozé, que parece ser um tipo prafrentex
e que até já foi nomeado o Mayor mais cool do circuito mundial de surf e tudo.
Que veste o fato e mete a prancha debaixo do braço sempre que há uma câmara de
TV por perto para criar um cenário bonito e radical mas a verdade Tozé, a
verdade é que lá dentro de água nunca ninguém o vê. Compreendo, afinal tem os
seus afazeres e um município para gerir. Terá mais em que pensar e com que se
preocupar. Pergunto-lhe porque é que há imundice por todo o lado (menos na
semana do mundial pois claro), porque é que as praias estão repletas de lixo,
as ruas estão cheias de lixo, os parques de estacionamento estão cheios de
lixo, porque é que os acessos às praias ( e às ondas que tanto enaltece)
estão pejados de entulho, porque é que as estradas fazem lembrar Beirute nos
tempos da guerra, porque é que os serviços de saúde são rudimentares, um
hospital com uma infraestrutura semelhante à de um hospital libanês de há 30
anos atrás, porque é que não existem estudos de crescimento sustentado, porque
é que os pequenos comerciantes se afogam em impostos para poderem sobreviver o
ano inteiro enquanto as grandes marcas se instalam e prosperam? Porque é que
Peniche que tem de facto, os melhores beach breaks da Europa e do Mundo, está
virada mais para quem vem e tão pouco para quem está e para quem fica, para
quem ama este lugar, como eu e decerto como o Tozé?
Não me entenda mal, eu acho que a valência do surf trouxe muitas coisas
boas a quem aqui vive, acho que estamos melhor do que em 2009, acho também que
o crescimento e a visibilidade de uma região acarretam responsabilidades
acrescidas de quem é visto no mundo inteiro (ainda que por poucos dias).
Ora bolas Tozé, as pessoas que o elegeram, a maioria, a grande maioria, são
gentes que lutam para sobreviver, que contam os tostões ao final do mês, que
vivem do mar, da agricultura e do pequeno comércio voltado para o turismo, que
nunca fizeram surf na vida nem têm dinheiro para o fazer mesmo que quisessem.
É essa a sua gente Tozé, E os 10 milhões que tanto gosta de anunciar, decerto
que dão para fazer muito mais do que apenas uma manobra de maquilhagem durante
o mês de outubro.
O surf está na moda, sim, só é pena que a moda esteja ao alcance de tão poucos
e que os muitos que aqui vivem, continuem a ter de contemplar o mar à distância
de quem só olha e pouco pode fazer.
Ser cool, para nós que aqui estamos, é estar presente o ano inteiro, é não ter
de abrir a janela e cheirar o fedor do lixo e das fábricas de conserva, é ir
até à praia e não encontrar toneladas de detritos trazidos pelo mar, é
preocupar-se com aqueles que tentam erguer-se nestes tempos de tempestade, é
amparar, é fomentar, é proteger.
Ser cool, Tozé, é muito, mas muito mais do que um "stunt
publicitário" para uma grande marca de surf.
Ser cool, é estar, e ser, de verdade.
Não me leve a mal Tozé, mas isto tinha de ser dito.
Um abraço.”