UMA OPINIÃO A CONSIDERAR
O Jornal “Publico de 14/11 pp publica uma longa tese
do ex-Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, sobre a eleição do sr. Trump
do que lhe deu origem e do que poderemos pensar que será um futuro próximo. Bem
sei que isto não corresponde ao que se espera de um blog. Mas sinto que é minha
obrigação como cidadão, divulgar neste tempo o pouco que se vai publicando na
imprensa e que constitui uma pedrada no charco da futilidade em que se
transformou a opinião publicada. Com a devida vénia transcrevemos do "Pùblico" o ensaio do Dr. Jorge Sampaio:
A nova Europa dividida num
contexto internacional de incertezas. E nós?
Por Jorge Sampaio
o optar por me debruçar aqui sobre a “questão europeia”,
chamemos-lhe assim, o meu objectivo não é trazer à colação certezas e ideias
feitas acerca da Europa, do seu passado e do futuro, mas antes tentar desbravar
um caminho de interrogações e perplexidades, que são afinal as de um europeu
convicto, que teima em continuar a sê-lo, mas que se confronta com um conjunto
de contradições, dilemas e perguntas para as quais as respostas não parecem
óbvias nos tempos que correm. Ou seja, e este é o meu ponto de partida, as
convicções outrora firmes que me acostumara a assumir como premissas
inabaláveis de um europeísmo esclarecido estão hoje, em 2016, algo toldadas
pela acumulação de dúvidas nascidas da confrontação com a realidade — o tal reality check, como bem se diz em
língua inglesa —, assim como pela acentuada e generalizada erosão da confiança
na Europa, no seu funcionamento, na sua capacidade de cuidar dos bens públicos
europeus e de responder às expectativas dos cidadãos.
Em suma, tentarei fazer nestas páginas um exercício de
militantismo europeu, na certeza de que a dinâmica do capitalismo global, tal
como se desenvolveu e se afirma no nosso tempo à escala planetária, exige da
Europa e dos países europeus a determinação de se constituir como uma
alternativa sólida, por um lado, à financeirização da economia e, por outro, ao
capitalismo autoritário de “valores asiáticos”, por assim dizer. Se esta
alternativa coincide com a União Europeia, tal como a conhecemos hoje, ou se exige
uma outra Europa, é uma questão que está em aberto e cujos contornos aqui
procurarei, precisamente, delinear.
À partida, direi, como posição de princípio, que é na fractura
aberta pelas insuficiências da actual Europa que importa trabalhar, mesmo se para
tal for necessário quebrar alguns tabus, colocar questões inconvenientes e
formular “hipóteses fora da caixa”.
União
Europeia, 60 anos em 2017
Está já anunciada, para o próximo ano, uma cimeira
extraordinária para comemorar o 60.º aniversário dos Tratados de Roma,
assinados a 25 de Março de 1957, os quais, como é bem sabido, deram origem à
actual União Europeia. Celebrações do género têm povoado a vida europeia, sendo
que, desta vez, as questões da participação ou não do Reino Unido e a
proximidade das eleições presidenciais francesas — cuja 1.ª volta está prevista
para 23 de Abril — poderão vir a dominar ou mesmo a ensombrar as referidas
comemorações, para não referir sequer a incerteza que paira sobre o futuro
político em Itália ou da própria Alemanha, onde haverá também eleições
legislativas no Outono do próximo ano. De qualquer forma, para além da
coreografia habitual que inclui discursos de ocasião e a tradicional fotografia
de família, o facto mais relevante será o documento a apresentar sobre “o nosso
futuro comum”, tal como foi decidido e anunciado no Conselho Europeu de
Bratislava de Setembro último.
Mas a verdade é que sabemos, de resto bem de mais, o quanto o
tema do “futuro da Europa” está hoje gasto e mais do que esgotado, uma vez que
consta da agenda europeia desde a adopção do Tratado de Nice, tendo estado, de
resto, no centro de vastos e múltiplos debates travados à escala europeia no
âmbito da convenção lançada em Dezembro de 2001 e que se prolongou pelos anos
seguintes. Não nos esqueçamos do desfecho de todo esse processo, que redundou
no abandono do projecto da adopção de um tratado constitucional para a União
Europeia, na sequência da sua rejeição por referendo em França e nos Países
Baixos em 2005.
Lembro aqui este pedaço da nossa história comum porque, com o
passar do tempo, apercebemo-nos melhor do quanto a crise que a Europa atravessa
hoje, e que já ninguém nega, tem raízes bem mais profundas, emaranhando razões,
falácias e demagogias, disfarçando disfuncionamentos e problemas que foram
deixados para trás sem que tivesse havido tentativas sérias de os resolver, a
não ser através da convocação de sucessivos grupos de sábios e da apresentação
de relatórios sobre o futuro da Europa, depressa deixados de lado…
Por mim, considero que a consistente e reiterada manifestação de
movimentos populistas, a que estamos a assistir, correspondem a uma nova e
inquietante tendência global, que se expressou já no plano europeu nos
referendos de 2005, que se consolidou no "Brexit" e que, no plano
nacional, tem dado origem à criação de partidos nacionalistas e a vitória a
figuras políticas improváveis.
Mas, fixando-nos, para já, no quadro europeu, olhando para a
última década, não nos pode escapar o facto de a União Europeia enfrentar uma
clara acumulação de dificuldades, problemas mal resolvidos e alguns estrondosos
insucessos, o que faz com que seja hoje consensual o estado de crise crónica do
projecto europeu, agravado, sem dúvida, a uma escala sem precedentes, com o
resultado do referendo no Reino Unido que levará à sua auto-exclusão da União
Europeia.
As dificuldades e desafios são de vária ordem, mas aqui gostaria
de começar por identificar duas grandes áreas: a económica, monetária e
financeira, por um lado, e a da segurança, do controlo das fronteiras e das
migrações, por outro. Em ambos os domínios produziu-se, a meu ver, um ponto de
clivagem forte que assinala, porventura, um ponto de não-retorno, cujo desfecho
está ainda por determinar.
Sejamos, pois, claros: a crise das dívidas soberanas não foi
resolvida, mas basicamente está apenas suspensa devido à intervenção do Banco
Central Europeu. Ou seja, os fundamentos da crise continuam presentes, a saber:
o baixo crescimento, o alto desemprego e a elevada dívida pública e privada
cuja implicação é, respectivamente, a contenção do Estado social e do
investimento público e a retracção do investimento privado com recurso a
capitais próprios das empresas. Face a esta situação, a verdade é que a
resposta da União Europeu (quer da Comissão, quer do Conselho) tem sido
claramente insatisfatória: por um lado, como a união bancária (nomeadamente com
o mecanismo de garantia de depósitos) continua por completar, a eventualidade
de uma nova crise torna-se maior, a qual obviamente atingiria os países mais
vulneráveis, incluindo Portugal. Por outro lado, não havendo progressos na
união orçamental e mantendo-se a situação actual, não há forma de o orçamento
comunitário (ou da zona euro, aliás, inexistente) poder absorver os choques
assimétricos que se fazem sentir em países particulares.
Acresce, ainda, que, não se tendo encontrado nenhuma solução
global para o problema das dívidas excessivas, se mantém a vulnerabilidade, em
particular dos países com maior endividamento, face ao agravamento das suas
condições de financiamento.
A interpretação dominante dos tratados, regulamentos e acordos
produzidos pelas instituições europeias continua a ser, embora com algumas
modulações, a de one size fits all.
Ou seja, aquilo que é proposto e de certo modo exigido aos países e aos povos
europeus dos países mais vulneráveis é que mantenham por períodos
significativos (dez a 15 anos) políticas ou de austeridade ou de forte
contenção orçamental e que registem significativos excedentes nas suas contas
públicas (de resto, nunca alcançados no passado) dificilmente compagináveis com
a manutenção dos seus estados de bem-estar.
Mas o pior é que, de facto, ninguém parece acreditar que
Bruxelas (ou Berlim) tenha qualquer iniciativa nos próximos meses para
responder à crise da eurozona, para alterar a ortodoxia financeira dos credores
ou para criar as condições institucionais e orçamentais que tornem possíveis
programas de reforma nas economias mais frágeis. Ora, acontece que também não
existe nenhum indicador no sentido da inversão de tendência de crise nos países
devedores: a Grécia pode requerer um novo resgate, a negociação sobre o sector
bancário italiano não está fechada e, em Portugal, a crise que nunca acabou
parece igualmente concentrada no sector bancário.
Em suma, devemos reconhecer que a Europa tem um problema
imediato para resolver, e que são as deficiências da moeda única. Há um
conflito entre países em torno do cumprimento do Tratado Orçamental, do reforço
da união bancária e da definição de elementos de união política.
Como resultado de todas estas questões mal resolvidas ou por
resolver, a área dos problemas sociais adquire premência redobrada — como criar
emprego, incentivar maior procura na zona euro e promover maior justiça social
através da luta contra as desigualdades crescentes?
O conjunto destas dificuldades — monetárias, financeiras,
económicas e sociais — tem constituído um ponto de clivagem forte no seio das
opiniões públicas europeias, contribuindo para gerar o reforço, agora com
fundamentação económica, dos argumentos daqueles que, radicalizados à esquerda
ou à direita, apelam ao fim do projecto europeu e ao regresso do proteccionismo
e dos nacionalismos.
Como acima já mencionei, deparamo-nos, a meu ver, com uma
segunda grande área de problemas relacionados com a segurança: o controlo de
fronteiras e as migrações. A forma desastrosa como a União Europeia tem gerido
este conjunto de dossiers tem
constituído um segundo pólo de fricções e de clivagem no seio das sociedades
europeias, designadamente devido às migrações descontroladas do ano passado, à
questão da repartição e integração dos refugiados, que continua por resolver.
Importa sublinhar que ligada a esta área de problemas está
também a crise do modelo aberto, tolerante e inclusivo das nossas sociedades
europeias, a braços com conflitos de ordem cultural e de valores. A dificuldade
em lidar com o choque cultural que está a abrir brechas fundas nas nossas
sociedades explica — juntamente com as dificuldades económicas e as
desigualdades sociais — o esboroamento a olhos vistos da confiança na União
Europeia, nas suas instituições e nos seus líderes, com todas as sondagens e
estudos de opinião a ilustrarem esta tendência.
É
impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como
próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo
Isto
explica, creio, a criação de partidos políticos fora do mainstream, partidos
de franjas e extremos, e de movimentos inorgânicos sui generis, bem como, por efeito de
espelho, o reforço dos partidos antieuropeus e populistas que advogam o
encerramento das fronteiras, o proteccionismo e o regresso dos nacionalismos,
porque, aos olhos dos cidadãos, está em causa o fraco ou mau desempenho da
governação europeia e a sua incapacidade em gerar emprego e prosperidade ou
ainda em encontrar soluções para desafios globais, como sejam o terrorismo, a
gestão das fronteiras ou a questão dos refugiados e das migrações.
A mim,
parece-me que a confiança hoje está abalada de forma sistémica e sistemática —
e, no fundo, a questão que se coloca é se esta desconfiança está já demasiado
cimentada para ser reversível e evitar o alastramento dos populismos de toda a
sorte.
A este
respeito, a saída do Reino Unido da União Europeia é inquietante, a vários
títulos, de que salientarei três: primeiro, porque inaugura uma nova etapa na
história europeia, a da “desconstrução” da União Europeia, uma fórmula suave
para não dizer “destruição”, após 60 anos dominados pela dupla dinâmica do
“alargamento-aprofundamento” da UE. Em segundo lugar, porque é uma porta aberta
para que outros Estados lhe sigam no encalce; em terceiro lugar, porque é uma
fonte de inúmeras e pesadas incertezas que poderão acabar por precipitar um
sem-número de problemas em cascata — na área das políticas comuns, mas também
no plano da economia, da segurança, da política externa ou da defesa, bem como
abalar de forma duradoura equilíbrios de poder já de si precários no seio da
governação europeia.
Olhando
para o resultado das eleições presidenciais americanas, creio que há razões
tangíveis que reforçam inquietações e pessimismo, pois está claro que todas
estas tendências vão no mesmo sentido, reforçando-se negativamente, sendo
impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como
próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo.
Por
conseguinte, neste complexo contexto europeu e internacional em que nos
encontramos, reconstruir a confiança constitui, a meu ver, um desafio grande,
moroso, complexo, mas incontornável. Não há economia nem mercado nem política
nem democracia sem esse cimento de base, a confiança. Não há paz duradoura se a
desconfiança minar as relações entre comunidades, povos e nações, se o pacto
social for rompido.
Para
restaurar a confiança, é preciso proceder à recapacitação das nossas
democracias no plano nacional, ao nível central e local; mas esta passa também
pelo resgate da democracia representativa na Europa, na fórmula sugestiva de
Soromenho Marques, pelo aprofundamento de uma União Europeia que sirva os
cidadãos e defenda o interesse geral europeu.
Tenho
a convicção de que cabe à Europa contribuir para reinventar a democracia para a
nossa era da globalização, até porque a Europa não é só parte dos problemas,
mas é também solução, dando aos países mais controlo sobre políticas que se
tornaram globais. Agora, tal não acontecerá se a Europa não contribuir para
reforçar o poder de escolha dos cidadãos, revitalizando a ideia de que a
democracia é o regime em que as alternativas políticas são possíveis. Mas, para
isso, a União Europeia tem de reatar com o melhor da sua tradição, a que
combina a liberdade que vem do liberalismo com a estabilidade, o bem-estar e a
equidade social que vêm da social-democracia. Se Bruxelas e os Estados-membros
da União Europeia não entenderem isto e nada fizerem para resgatar estes
valores, as comemorações de Março do próximo ano do 60.º aniversário dos
Tratados de Roma correm sério risco ou de não terem sequer lugar ou de se
transformarem numa marcha fúnebre.
O novo
contexto geopolítico
Incapaz
de gerir bem a inédita complexidade da presente globalização, o século XXI
começou mal, carregando já nestes seus primeiros anos um cortejo de
indescritíveis violências, situações de terror múltiplo e geograficamente
disperso, crises económicas e financeiras demolidoras de um desejável progresso
social, com preocupantes efeitos numa generalizada descredibilização da acção
política, quer seja no plano nacional, quer no da concertação internacional,
que desacredita todo o sistema do multilateralismo.
Difícil,
por tudo isto, ser optimista, quando a realidade nos interpela, revelando um
tempo de conflito e de persistentes violações dos direitos humanos; de
intoleráveis assimetrias na riqueza e no acesso aos bens públicos, que depois
se projectam no desenho de uma penosa geografia mundial de doenças, epidemias e
exclusões; ou na insistente existência de massacres sectários.
Assistimos
hoje a perversas destruições de memórias históricas que constituíam até agora
acervo intocável do património da humanidade; presenciamos o alastrar de
perigosos fundamentalismos, que julgávamos já sepultados pelo progresso comum;
e, neste milénio gerador de tantas expectativas, convivemos com a vergonhosa
tragédia dos refugiados e migrantes que procuram na Europa uma alternativa à
morte, à perseguição, à violência ou à fome, e encontram o Mediterrâneo como
sepultura dos seus magros sonhos, reféns de redes de traficantes que continuam
a operar com escandalosa impunidade.
Neste
mundo preocupado por um diferente alinhamento de hierarquias de poder e da
emergência de novas inseguranças, percebemos com desalento que mesmo a União
Europeia — aonde antes íamos buscar conforto, porque depositária de muitas das
nossas esperanças de progresso e de equilíbrios estratégicos — tem revelado nos
últimos anos uma impotência decisória que parece ser a única marca da sua
política externa.
Agora
a questão crucial é que a saída anunciada do Reino Unido da União Europeia
constituiu um ponto de não-retorno no projecto europeu. A meu ver, ignorar que
estamos perante uma situação em que nada será jamais como dantes e em que nada
poderá continuar a ser business
as usual levar-nos-á directamente ao precipício.
A
história não se repete, mas há dinâmicas que parecem recorrentes, sufragadas
por teorias várias, designadamente as que ao apogeu dos grandes projectos
civilizacionais fazem seguir o declínio e a decadência como etapas previsíveis.
Não quero com isto vaticinar um destino trágico para a União Europeia — o que é
dizer para todos nós —, mas sim, ao invés, lançar um apelo veemente para que se
faça algo para inverter esta corrida para o abismo em que parecemos lançados e
de que, de resto, a emergência dos populismos como uma nova tendência global
constitui um sério e preocupante aviso, reiterado com o resultado das eleições
americanas.
Perante
este quadro sombrio, importará, todavia, lembrar que, da História, e da sua
lenta e pouco linear passada de anos e séculos, nos chega igualmente um sólido
acervo de realizações que justificam que nos continuemos a bater por um futuro
melhor e pela evolução positiva da sociedade em que vivemos, no plano nacional
ou internacional.
O
século XXI tem criado, à volta da Europa, um extenso arco de conflitos e
situações de crise que lavram, vitimando sobretudo as populações civis e
impelindo milhares a lançar-se em aventuras transcontinentais incertas e
perigosas. A luta contra o terrorismo, se continua a mobilizar os esforços de
um vasto leque de parceiros, deixa, no entanto, em aberto numerosas incógnitas,
como sejam o futuro da Líbia, Síria, do Iraque, do Iémen e do Afeganistão, bem
como a relação de forças entre, digamos, o eixo sunita/xiita. O relacionamento
com os parceiros próximos da Europa — designadamente Turquia e Rússia — padecem
de interlocução séria e de um agenda europeia própria, reféns de interesses
mais vastos e contraditórios, ora focados na crise dos refugiados no que
respeita à Turquia, ora na questão ucraniana no que toca à Rússia ou ainda na
questão síria, que envolve ambos.
A
crise das dívidas soberanas não foi resolvida, mas basicamente está apenas
suspensa devido à intervenção do BCE
Por
seu turno, o relacionamento transatlântico, tão essencial à própria dinâmica
intra-europeia, está hoje suspenso por um pesado conjunto de incertezas,
resultantes quer de todas as incógnitas e indefinições que rodeiam a próxima
administração americana, quer, do lado europeu, das consequências do
"Brexit" na redefinição dos equilíbrios intra-europeus e do seu
impacto geral nas relações de cooperação, num vasto plano de matérias,
incluindo a segurança e a defesa e nomeadamente com a NATO.
A
eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA traz consigo um lote acrescido
de imprevisibilidade e de incertezas, sendo plausível um período mais ou menos
longo de ajustamentos ou mesmo, digamos, de aprendizagem por ensaio e erro no
plano da política externa da nova administração, com todos os riscos inerentes.
À
Europa caberá a opção ou de se tornar irrelevante ou de se afirmar como um
modelo civilizacional, económico e de sociedade com peso próprio, podendo
afirmar-se como o fiel das múltiplas balanças que se poderão vir a desenhar no
seio de uma ordem mundial multipolar, marcada por uma geometria de poderes
variável.
Para
mim, que, sobretudo nestes últimos anos, viajei intensamente pelo mundo
inteiro, convivi de perto com povos de todos os continentes, discuti e vi
realidades — culturais, sociais, políticas e societais — das mais variadas, há
uma coisa que se tornou óbvia: é que, de onde quer que viesse (da Ásia, África,
Américas ou do Extremo Oriente), a noção de se “chegar a casa” quando se aterra
na Europa (seja em Paris, Londres, Luxemburgo, Tessalónica, Amesterdão,
Barcelona, Riga ou em Cracóvia) é real, além de extremamente reconfortante…
E isto
significa, afinal, que a Europa é a partilha de uma casa comum, de um património
civilizacional e de valores, de um modelo de sociedade, e que é isto que nos
faz sentir parte de uma mesma família, enfim, que nos faz sentir sermos todos
cidadãos e membros de uma comunidade de destino. Para mim, é esta sensação ou
sentido de filiação ou de cordão umbilical comum que dá sentido ao projecto
político europeu. Ora, um dos grandes desafios que se coloca hoje é
precisamente o de como reforçar este sentimento de pertença dos europeus, sejam
urbanos ou de comunidade rurais, de gerações mais novas ou mais antigas; como
fortalecer o sentido desta identidade partilhada; como revigorar o orgulho de
ser europeu.
Portugal,
30 anos depois
Ao
completarem-se 30 anos da adesão de Portugal ao projecto de integração
europeia, porventura a mais inovadora experiência política realizada desde a
paz de Vestefália, este poderia ser o momento certo para fazermos um balanço
rigoroso e exaustivo da nossa participação europeia na dupla vertente do que a
Europa tem feito por nós e do que podemos fazer por ela.
Como a
“questão do futuro da Europa” está de volta, importa, a meu ver, que Portugal
inicie um processo de reflexão interno — dentro das mais variadas sedes e
foros, designadamente no plano das instituições de segurança e defesa — sobre
como assegurar uma participação de qualidade na União Europeia. Temos de ser
contribuintes líquidos para o debate europeu que vai ocorrer na sequência do
"Brexit", que se vai intensificar e em que não poderemos figurar como
espectadores mais ou menos passivos. Temos de saber o que queremos, temos de
levar ideias claras e propostas bem definidas, e, sempre que possível,
contribuir para liderar o debate.
Sabemos
já — de um saber feito de experiência e, por vezes, de dura experiência — que
temos de ser mais rigorosos em relação à Europa que queremos. Já vimos que não
é uma qualquer Europa que serve os nossos interesses. Creio que deveríamos
identificar o núcleo duro de premissas por que nos deveríamos bater. Por
exemplo, penso que deveríamos recusar todo o tipo de iniciativas restritivas
que se baseiem em critérios passadistas e obsoletos, como sejam as que recorrem
à figura dos “membros fundadores”. Ao invés, dever-nos-íamos bater por que a
europa do euro — a dos 19 do euro — seja o verdadeiro núcleo duro de uma UE
reformada. A meu ver, dever-se-ia começar por solidificar a União entre os 19
da zona euro por forma a relançar a construção europeia pela base — ou seja,
através de um compromisso claramente político no sentido de reforçar os
mecanismos económicos e financeiros da zona euro.
Um
outro ponto muito importante é que a saída do Reino Unido da UE vai produzir
mudanças fundas em termos dos equilíbrios de poder intra-europeus, sendo
provável, a meu ver, a consolidação do “momento unipolar” alemão, incluindo o
reconhecimento norte-americano da Alemanha como o principal parceiro europeu
dos Estados Unidos. Essa evolução estava esboçada já antes do "Brexit",
mas a sua confirmação marcará uma viragem que obrigará Portugal a concentrar-se
sobre as suas relações com a Alemanha e com a Espanha, que é o principal
parceiro de Berlim (e de Washington) na Península Ibérica.
Por
certo, Portugal deve reconstituir, num quadro bilateral, a sua relação com o
Reino Unido, como o exigem a história comum, os interesses económicos e a
necessidade imperativa de proteger as comunidades emigrantes — devem estar mais
de 300 mil portugueses no Reino Unido, o principal destino da última vaga de
emigração. Mas essa relação deixa de ser directamente relevante na balança
interna da União Europeia.
Esta
alteração dos equilíbrios geopolítico-estratégicos exigirá reflexão aprofundada
do nosso lado, realinhamentos e reposicionamentos diplomáticos e de política
externa que convém prepararmos atempadamente.
Por
último, penso que é também forçoso admitir que deixou de existir, agora no
plano interno, um consenso nacional sobre a política externa, incluindo entre
os dois principais partidos. Tornaram-se mais evidentes as clivagens que
separam os partidários do reforço de uma aliança alemã dos outros que se lhe
opõem, persistem as divisões que separam os europeístas e os atlantistas, são
cada vez mais fortes as posições nacionalistas contra a integração europeia,
incluindo o Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, na ausência de uma força
populista de direita.
Neste
contexto, há que nos interrogarmos sobre qual será a melhor estratégia e os
vários níveis de interlocução — inclusive institucional — para inverter as
divergências cavadas entre as elites políticas, que não parecem preparadas para
responder à crise precipitada pelo "Brexit". Há também que reflectir
seriamente sobre o impacto possível de novas opções de política externa e de defesa
da futura administração americana para os nossos próprios interesses nacionais.
Em
suma, atravessamos um momento especialmente crítico para o nosso futuro
colectivo — no plano nacional, mas também europeu e até mundial. Mas, qualquer
que seja o sentido futuro da integração europeia — e sabemos que há vários
cenários —, o que me parece importante sublinhar aqui é a necessidade de se
aprofundar a discussão sobre que Europa queremos, que modelo para a
reformatação da zona euro e que actualizações pretendemos fazer dos nossos
compromissos europeus.