AS FARPAS – Eça de Queiroz
1871
O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os
costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem
por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição
que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade
entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe
média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na
miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo
pelas ideias aumenta em cada dia.
Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença
de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu
as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as
mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio
definha, A indústria enfraquece. O salário diminui.
A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção
fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia
proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um
nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um
empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres
ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto
por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada
de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do
País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as
consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude.
Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se,
conversando e jogando o voltarete, que de Norte a
Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está
desorganizado – e pede-se conhaque!
Assim todas as consciências certificam a podridão; mas
todos os temperamentos se dão bem na podridão!
Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença
universal. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o
que poderíamos chamar – o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a
indignação amarga de panfletários?
Com a serenidade experimental de críticos? Com a
jovialidade fina de humoristas?
Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento
histórico só há lugar para o humorismo? Esta decadência tomou-se um hábito,
quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios,
eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O
áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra
este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de
Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça!
Achas imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso?
Preferias que fizéssemos um jornal político, com todas as suas inépcias e todas
as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga
entre as mãos dos tipógrafos?
….
Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial,
constitucional, burguês, doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia
de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.
Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto,
onde se não deve estar.
Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem
havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia ciência de Catão.
De onde vimos? Para onde vamos? – Podemos apenas
responder:
Vimos de onde vós estais, vamos para onde vós não
estiverdes.
Nesta jornada, longa ou curta, vamos sós. Não levamos
bandeira, nem clarim.
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