quinta-feira, agosto 01, 2019


A PRAÇA DA CANÇÃO
Em 1975 eu estava na República da Guiné-Bissau. A 25 de Novembro eu achava que a minha esperança de um Portugal mais livre, fraterno e a caminho de uma sociedade em que todos os portugueses tivessem a possibilidade de poder atingir níveis de dignidade, pensava eu que tudo tinha acabado e que de novo entraríamos num regresso ao passado obscurantista de que nos tínhamos libertado com o 25 de Abril.
Alguns companheiros de Partido deram às vila-diogo e emigraram para os EUA, Alemanha, França e uns quantos para Inglaterra. Eu a viver ainda no mundo da Utopia ofereci-me como cooperante para a Guiné-Bissau.
Foi um romper de muros, preconceitos e sonhos. Nós os colonialistas perfeitos nem sequer tínhamos transmitido uma língua àqueles povos. Como o meu curso de origem era de química, fui dar aulas de Físico-química para a Escola Vitorino Costa, que se situava em Brá, na estrada para o Aeroporto.
O modelo da escola era um misto do sistema português com o cubano. A grande maioria dos alunos não falava português. O crioulo era a língua dominante. Existiam alunos que falavam (e muito bem) o francês porque tinham estado na Guiné Conakri enquanto os pais combatiam. Outros falavam espanhol que erasm os que tinham estado em Cuba. Outros ainda falavam russo, porque o país que os tinha acolhido tinha sido a União Soviética. Quase todos falavam ainda a língua da região de onde provinham, ou mandinga, ou fula, ou papel, ou manjaco.
Eu falava português (a língua oficial), pedia depois aos melhores em português para traduzirem para crioulo e era assim feita a transmissão de saberes. Muitos daqueles alunos não tinham pais que os ajudassem. Os pais ou tinham morrido na luta, ou faziam parte dos quadros militares do país. Por isso aquela escola tinha ainda um refeitório e um dormitório para aquelas crianças, as “Flores da Nossa Luta”, como eram designadas por Amílcar Cabral. E era comum ver o Luiz Cabral, presidente da República visitá-los aos fins de semana ou ir almoçar com eles durante a semana sempre que as suas funções o permitiam.
Este contexto a que vem o título deste post? Um dia estávamos uns quantos cooperantes a conversar e uma colega professora de português, disse-nos que tinha tido péssimos resultados num teste de português que tinha dado aos seus alunos. Falámos com ela sobre isso e a certa altura ficámos estupefactos quando a nossa colega nos disse que o texto em que tinha baseado o teste, tinha sido a introdução da “praça da canção”, onde fala de uma pétala de rosa que tinha caído de uma carta que o Manuel Alegre tinha recebido na prisão.
Para aqueles mininos falava-se de rosas que era um flor que ali não existia. E num contexto de guerra de guerrilha, falava-se de prisões.
A minha colega, cooperante como eu, ainda não se tinha apercebido sobre quem eram aquelas crianças, donde vinham e o que estavam ali a fazer.
Vinha para ali despejar ideologia e solidariedade e não integrar-se para perceber.
Já antes as senhoras do Movimento Nacional Feminino tinham feito o mesmo.            

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