REFLEXÕES
Em 1977, regressado da Guiné-Bissau, fui fazer estágio para
professor em Coimbra. O meu trabalho final de estágio foi dedicado ao mote “SE
QUERES O HOMEM NÃO MATES A CRIANÇA”. 40 anos depois venho a encontrar a mesma
ideia numa crónica de um dos grandes escritores portugueses contemporâneos. Não
resisto a transcrevê-la:
10.6.17 (dia da morte do meu Pai)
António Lobo Antunes
Crónica publicada na VISÃO 1272 de 20
de julho
escritora Gertrude
Stein insistia com os jovens escritores americanos de quem era protectora,
Hemingway, Fitzgerald, tantos outros, da importância que teria para eles
viverem em Paris. A sua explicação era simples:
– Não é tanto o que
Paris dá
(insistia ela)
é o que Paris não
tira. Esta frase traz-me sempre à ideia a pergunta que Alexandre Dumas
(gosto de Alexandre
Dumas)
faz no seu diário:
“Porque motivo há
tantas crianças inteligentes e tantos adultos estúpidos?”
Fica a reflectir
acerca disto durante uns parágrafos e acaba por concluir que só pode ser um
problema de educação. Por exemplo os desenhos das crianças em geral são
magníficos, os dos adultos, excepto no caso de serem artistas de talento, uma
bodega. Claro que é um problema de educação: uma criança criativa é herética e
subversiva
(até rima, olha)
e claro que isso
assusta os professores que exigem dos alunos uma normalização que conduz
inevitavelmente à mediocridade que tanto tranquiliza os pais. Queremos que os
filhos tenham vidinhas, sejam tristemente independentes, consigam um bom
casamento, uma, tanto quanto possível, boa casa, um ordenado simpático, filhos
bem educados. Claro que admitimos Gauguin ou Mozart desde que não façam parte
da família. Em geral as famílias defendem-se criando um maluquinho. Todas têm
aquilo que consideram o maluco da família e, quando o maluco, por qualquer
motivo, deixa de o ser, apressam-se a arranjar outro antes que a estrutura se
desagregue. Não há nada que assuste mais as pessoas do que a criatividade, nada
que as apavore mais do que a diferença. A sociedade necessita de medíocres que
não ponham em questão os princípios fundamentais e eles aí estão: dirigem os
países, as grandes empresas, os ministérios, etc. Eu oiço-os falar e pasmo não
haver praticamente um único líder que não seja pateta, um único discurso que
não seja um rol de lugares comuns. Mas os que giram em torno deles não são
melhores. Desconhecemos até os nossos grandes homens: quem leu Camões por
exemplo? Quase ninguém. Quem sabe alguma coisa sobre Afonso de Albuquerque? Mas
todos os dias há paleios cretinos acerca de futebol em quase todos os canais.
Porque não é perigoso. Porque tranquiliza. Os programas de televisão são quase
sempre miseráveis mas é vital que sejam miseráveis. E queremos que as nossas
crianças se tornem adultos miseráveis também, o que para as pessoas em geral
significa responsáveis. Reparem, por exemplo, em Churchill. Quando tudo estava
normal, pacífico, calmo, não o queriam como governante. Nas situações extremas,
quando era necessário um homem corajoso, lúcido, clarividente, imaginativo, iam
a correr buscá-lo. Os homens excepcionais servem apenas para situações
excepcionais, pois são os únicos capazes de as resolverem. Desaparece a
situação excepcional e prescindimos deles. Gostamos dos idiotas porque não nos
colocam em causa. Quanto às pessoas de alto nível a sociedade descobriu uma
forma espantosa de as neutralizar: adoptou-as. Fez de Garrett e Camilo
viscondes, como a Inglaterra adoptou Dickens. E pronto, ei-los na ordem, com
alguns desvios que a gente perdoa porque são assim meio esquisitos, sabes como
ele é, coitado, mas, apesar disso, tem qualidades. Temos medo do novo, do
diferente, do que incomoda o sossego. A criatividade foi sempre uma ameaça
tremenda: e então entronizamos meios-artistas, meios-cientistas,
meios-escritores. Claro que há aqueles malucos como Picasso ou Miró e
necessitamos de os ter no Zoológico do nosso espírito embora entreguemos o
nosso dinheiro a imbecis oportunistas a que chamamos gestores. E, claro, os
gestores gastam mais do que gerem, com o seu português horrível e a sua
habilidade de vendedores ambulantes: Porquê? Porque nos sossegam. Salazar
sossegava. De Gaulle, goste-se dele ou não, inquietava. Eu faria um único teste
aos políticos, aos administradores, a essa gentinha. Um teste ao seu sentido de
humor. Apontem-me um que o tenha. Um só. Uma criatura sem humor é um ser
horrível. Os judeus dizem: os homens falam, Deus ri. E, lendo o que as pessoas
dizem, ri-se de certeza às gargalhadas. E daí não sei. Voltando à pergunta de
Dumas
– Porque é que há
tantas crianças inteligentes e tantos adultos estúpidos?
não tenho a certeza
de ser um problema de educação que mais não seja porque os educadores,
coitados, não sabem distinguir entre ensino, aprendizagem e educação. A minha
resposta a esta questão é outra. Há muitas crianças inteligentes e muitos
adultos estúpidos porque matámos o máximo de crianças que perdemos quando elas
começaram a crescer. Por inveja, claro. Mas, sobretudo, por medo.
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