A IDADE DA INOCÊNCIA (texto reformulado)
Para o Jorge Saldanha com um abraço e muita ternura
Vivi sem interrupção até aos 16 anos em Peniche. Que me recorde este viver teve umas breves incursões de férias na Atouguia da Baleia e uma ou outra ida aqui ou ali com o meu pai.
Os meus amigos foram ao longo destes 16 anos o pessoal da minha rua, os da rua “lá de trás” entre os quais destaco o Idinho e o ZéZé, o pessoal que frequentava o Jardim e o Clube, e depois sucessivamente os meus colegas da escola primária, da Admissão, do Ciclo Preparatório e todos os da Escola Industrial e Comercial de Peniche. Aos leitores que parecer que todos são muitos, recordo que aos 9 anos quando entrei para a Escola na fábrica do Alemão (o tal alemão que era avô do Herman José), éramos cerca de 120 alunos e quando saí da Escola Industrial aos 16 anos, não passávamos de 300 alunos.
Nesse tempo Peniche não passava de um bocado de terreno com umas quantas casas, todos os habitantes se conheciam uns aos outros e estava fora de causa entre ao jovens e adolescentes, cruzarmo-nos uns pelos outros sem uma saudação (Óiiiii!) ou sem uma “pedrada”. A distância entres as duas coisas era se pertencíamos à mesma “companhia” ou a “companhias adversárias”, se éramos de Peniche de Baixo e eles de Peniche de Cima. Nunca éramos indiferentes uns aos outros.
Tornávamo-nos adultos gradualmente. Uns mais cedo que outros. Alguns de nós acabavam cedo a “Primária” e cedo começavam a lidar na vida dos seus pais e avós. O Mar tornava-se a sua casa e a Ribeira o seu Encarregado de Educação. Só os víamos aos domingos no futebol e os nossos Óiiiis, tornavam-se lamentos pela perda.
Outros acabavam a Escola Industrial e iam para as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico em Alverca, ou para a Casa Hipólito em Torres Vedras, ou para a Sorefame, para a Siderurgia no Seixal. Nesses locais de culto da nossa incipiente indústria nacional, aprendiam a desmamar-se de Peniche e a tornarem-se cidadãos do pequenino mundo português.
Uma pequena minoria continuava a estudar e a sua independência era mais demorada e menos dura. Teriam de passar alguns anos e com a vida militar nasciam então para um novo estatuto mais adulto.
A Inspecção era o reencontro de todos. E aí era o choque. Muitos reencontravam-se pela primeira vez depois da saída da escola primária. Para além de tantos sentimentos que se cruzavam naquele dia, chegava a haver alguma vergonha por alguns de nós se terem tornado adultos tão cedo, enquanto outros permaneciam protegidos do passar dos anos e da dureza da vida.
…Agora passados mais de cinquenta anos sobre isto tudo, é possível encontrarmo-nos sem nos cumprimentarmos. Por onde se perderam aqueles Óiiiiiiiiiis? Em que percurso, em que guerra, em que partilha ficou aquela costela penicheira que nos aproximava uns dos outros?
Porque é que teve de ser assim? Porque não ficou o encantamento que era a gente reconhecer-se no Niassa quando partíamos para uma guerra que não era nossa.
Porque não resta aquela noite de boémia dos bares de Luanda ou de Nampula…
Onde estão aquelas tardes solarengas a comer ostras nas cervejarias do Pidjiguitti?
Que é feito da alegria que era irmos todos em excursão para ver o Peniche jogar em festa contra o Sintrense ou o Olhanense…
Hoje muitos de nós somos indiferentes uns aos outros. O que ganhámos com isso? Tornámo-nos melhores? Não o creio. Só sei que não sei onde ficou a idade da nossa inocência.
Não foi a crise que nos separou. Foi África. Foi fazer da Democracia uma liga de Futebol e quem pertence a um clube terá de ser violento e agressivo com as turbas dos outros clubes. Foi o ser mais ou menos expedito. Quem se atirou aos oportunismos sejam eles de que tipo forem e singrou, não se revê nos amigos com quem brincou e que pretende utilizar nos seus planos a curto e médio prazo. São para usar e deitar fora.
Quanto de nós não se desperdiça em cada amigo que já não reconhecemos? Sou uma imagem pálida do passado perdido num presente, para o qual o futuro começa desesperadamente a faltar.
É nestas memórias que guardo o melhor de mim.
2 comentários:
Óiiii, Zé Maria!
Obrigado por este excelente acto de contrição, sem hipocrisias, comum a todos os penicheiros com mais de meio século de vida.
Subscrevo-o integralmente.
P(oi)s é!!! Delicioso este teu texto. Sabes? Há quem diga que os Homens não choram! Se calhar na minha (nossa) idade, tornamo-nos mais sentimentais. O certo é que li o texto e uma lágrima malandra aflorou-me a vista. Como diz o Pedrosa...excelente acto de contrição sem hipocrisias. Continua a escrever que vale sempre a pena ler-te.
Obrigado Zé!!!
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