Estes dias de paragem forçada têm-me permitido arrumar papéis e memórias. Entre outras situações regressei a 1961. Ao ano em que estudando em Lisboa com 17 anos me inscrevi num “Curso de Formação Ultramarina” promovido pela Mocidade Portuguesa e que decorreu no Palácio da Independência (sede nacional da MP na época), no Largo de S. Domingos em Lisboa.
O curso decorreu durante uns meses (julgo que 6) e no final tínhamos de apresentar um trabalho sobre um tema à nossa escolha. Já não me recordo o tema do meu trabalho mas recordo que fiquei classificado em 3º lugar e com isso recebi como prémio uma estadia por 1 mês em S. Tomé e Príncipe.
E em julho lá fui.
Fiquei instalado na Roça de Monte Café. Que era o centro das minhas deambulações na ilha de S. Tomé. Percorri a ilha de uma ponta a outra e fiz uma deslocação num barco de guerra à ilha do Príncipe e ao ilhéu das Rolas tendo neste último ido visitar o marco geodésico colocado por Gago Coutinho e que assinala o local por onde passa a linha do Equador. Estive com um pé no hemisfério Norte e outro no hemisfério sul, o que confere uma sensação de grandiosidade imensa a quem o experimenta.
Recordo
longas horas a cavalo pelo interior da ilha a subida a pé ao Pico de S. Tomé
com 2024 m de altura.
Recordo
as longas horas de conversa com os capatazes de Roças e portugueses ali
deslocados em empregos da Administração Pública.
Ali
aprendi o que era a escravatura em pleno século XX, com naturais de Cabo Verde
e Angola recrutados para trabalhar nas roças e que ficavam endividados até ao
resto das suas vidas. A roça pagava-lhes a deslocação de barco para S. Tomé e
eles ficavam a pagar com o fruto do seu trabalho. A roça dava-lhes alojamento
que eles descontavam no salário. A Roça vendia-lhes as mercearias e eles
descontavam nos salários. Quantos mais anos passavam mais se endividavam.
Mandavam vir as mulheres e a roça pagava e eles descontavam. As filhas eram
para usufruto dos patrões brancos ( e eu assisti a isto).
Aprendi
a ler nas entrelinhas e vi mais ali do que durante 6 meses que durou o meu
curso de formação ultramarina. O que ali aprendi ajudou a fazer de mim o homem
que hoje sou. Devo a S. Tomé e Príncipe o ter percebido o que foi a colonização
portuguesa e o que eram “os bons ofícios do colonialismo português”. Mais de
uma dúzia de anos depois consolidei o que ali aprendi com o que encontrei na
República da Guiné-Bissau onde estive 2 anos como professor cooperante.
Quem
melhor explicou o que foi a vida de escravatura em S. Tomé e Príncipe foi
Cesária Évora. Aqui deixo em jeito de homenagem aquela terra lindíssima esta
canção fabulosa:
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