quarta-feira, outubro 19, 2016


PENICHE CAPITAL DA ONDA. E O RESTO?

Por João Pedro Santos. In revista “Sábado”

Outubro 18, 2016

Mão amiga fez-me chegar este artigo de opinião publicado na Revista “Sábado”. Pelo seu interessante desenvolvimento, aqui o reproduzo com a devina vénis ao autor.

 

“O "estar na moda" parece ser uma regra de conduta nos dias que nos correm por debaixo dos pés, e o surf, está na moda.

 

Mas começo pelo início como convém para não confundir as certezas de quem lê e se interessa pelo que nos passa mesmo à frente dos olhos.


Os acasos e desavisos da vida fizeram com que, nos últimos dois anos eu viesse a assentar arraiais no Baleal, pequeno braço de terra no extremo oriental da Península de Peniche. Lugar de clima de personalidade imprevisível e temperamento forte. Lugar único na sua singularidade geográfica. Lugar de uma beleza capaz de nos prender a esta terra de ondas nascidas do vento e dos Deuses do mar. Lugar que cativa e agarra. Lugar que cheira a brisa e saudade. Lugar que é meu e teu também, se alguma vez já tiveste a sorte de por cá andar e olhar com olhos de ver as Berlengas lá ao fundo por entre as nuvens a anunciar chuva ou talvez um dia de sol.


Afinal por mais que os dias se repitam nunca se sabe o que o futuro trará por estas bandas de pescadores, senhores da terra e gentes de prancha debaixo do braço, sempre dispostas a desafiar a rotina com mais uma dança por entre linhas sucessivas de ondas, linhas tão perfeitas que te levam a concluir que se calhar Deus existe mesmo, e tu consegues ouvi-lo falar no incessante desmoronar de água durante mais um set a desenhar a linha de costa.

 

Nada de novo para mim, afinal sempre estive por aqui, desde que me lembro de ser gente em vida, os meus pais são daqui, os meus avós e amigos mais próximos também. O acaso não fez mais que trazer-me de volta a casa e mesmo que um dia arranque para outras paragens, a minha alma continuará a olhar o mar moldar a magia desta terra. Até que um dia regressarei para resgatar o resto de mim que por aqui ficou. Mas para já estou inteiro. Eu, como tantos que por aqui vivem agora, e que sabem o valor incalculável que a vista consegue alcançar.


Desculpem-me a seca que vos estou a dar, mas isto tinha mesmo de ser dito para melhor poderem compreender o que aí vem.


Pois é, voltando ao início, o surf está na moda. Está na moda há já alguns anos como decerto sabem, nada de novo afinal. E, nestes últimos oito anos, a moda atinge o seu clímax por esta altura, com uma das etapas do mundial de surf a realizar-se mesmo aqui à porta de casa, em Supertubos.


Que coisa espectacular! Dirão vocês aí desse lado da internet.


Sim, é giro, respondo eu. Os melhores surfistas da actualidade, grande impacto mediático, milhares de turistas de olhos claros e cabelos loiros, festas, multinacionais por todo o lado a exibirem as suas marcas a dizerem-te ao ouvido que tu podes ter tudo, que tu tens de ter tudo para estares na moda, para seres como eles (os Pros) para apareceres e seres digno de nota, para te destacares como alguém que vive "na crista da onda" (ok, perdoem-me a metáfora barata mas não me ocorreu nada de mais apropriado para o caso).


E foi, segundo estas premissas que ditam os tempos, que o edil local, o Tozé, como gosta de ser conhecido, diminutivo informal de António José Correia, presidente da câmara de Peniche, alicerçou o seu legado de Peniche Capital da Onda. Desde 2009 que o Mundial passa por aqui durante o mês de outubro. E, ano após ano, o Tozé coloca-se em bicos dos pés por entre risos francos e oferendas em forma de latas de conservas:


- "Eu vi que isto do surf tinha um potencial do caraças, fui ter com o Manuel Pinho em 2008 (então ministro da economia) e enquanto comíamos umas amêijoas num almoço em Olhão consegui vender-lhe esta ideia do surf. Em 2009 já cá estava o mundial!"


- "Sabe que no mês de outubro o Mundial tem um impacto económico (em Peniche) superior  a 10 milhões de euros e temos dezenas de milhar de turistas?"


- "Isto antes era um deserto, só arrebitava em agosto e depois desaparecia. Agora está cheio de surfcamps, hotéis, comércio, vida nocturna. Peniche está no mapa o ano inteiro!"


Sim, tudo isto pode ser verdade Tozé. Se bem que eu, comum ignorante das lides políticas, tenha alguma dificuldade em perceber exactamente onde estão e para onde vão esses 10 milhões de euros de que fala. Mas acredito que existam mesmo, por isso pergunto-lhe o seguinte, a si Tozé, que parece ser um tipo prafrentex e que até já foi nomeado o Mayor mais cool do circuito mundial de surf e tudo. Que veste o fato e mete a prancha debaixo do braço sempre que há uma câmara de TV por perto para criar um cenário bonito e radical mas a verdade Tozé, a verdade é que lá dentro de água nunca ninguém o vê. Compreendo, afinal tem os seus afazeres e um município para gerir. Terá mais em que pensar e com que se preocupar. Pergunto-lhe porque é que há imundice por todo o lado (menos na semana do mundial pois claro), porque é que as praias estão repletas de lixo, as ruas estão cheias de lixo, os parques de estacionamento estão cheios de lixo,  porque é que os acessos às praias ( e às ondas que tanto enaltece) estão pejados de entulho, porque é que as estradas fazem lembrar Beirute nos tempos da guerra, porque é que os serviços de saúde são rudimentares, um hospital com uma infraestrutura semelhante à de um hospital libanês de há 30 anos atrás, porque é que não existem estudos de crescimento sustentado, porque é que os pequenos comerciantes se afogam em impostos para poderem sobreviver o ano inteiro enquanto as grandes marcas se instalam e prosperam? Porque é que Peniche que tem de facto, os melhores beach breaks da Europa e do Mundo, está virada mais para quem vem e tão pouco para quem está e para quem fica, para quem ama este lugar, como eu e decerto como o Tozé?

Não me entenda mal, eu acho que a valência do surf trouxe muitas coisas boas a quem aqui vive, acho que estamos melhor do que em 2009, acho também que o crescimento e a visibilidade de uma região acarretam responsabilidades acrescidas de quem é visto no mundo inteiro (ainda que por poucos dias).


Ora bolas Tozé, as pessoas que o elegeram, a maioria, a grande maioria, são gentes que lutam para sobreviver, que contam os tostões ao final do mês, que vivem do mar, da agricultura e do pequeno comércio voltado para o turismo, que nunca fizeram surf na vida nem têm dinheiro para o fazer mesmo que quisessem.


É essa a sua gente Tozé, E os 10 milhões que tanto gosta de anunciar, decerto que dão para fazer muito mais do que apenas uma manobra de maquilhagem durante o mês de outubro.


O surf está na moda, sim, só é pena que a moda esteja ao alcance de tão poucos e que os muitos que aqui vivem, continuem a ter de contemplar o mar à distância de quem só olha e pouco pode fazer.


Ser cool, para nós que aqui estamos, é estar presente o ano inteiro, é não ter de abrir a janela e cheirar o fedor do lixo e das fábricas de conserva, é ir até à praia e não encontrar toneladas de detritos trazidos pelo mar, é preocupar-se com aqueles que tentam erguer-se nestes tempos de tempestade, é amparar, é fomentar, é proteger.

Ser cool, Tozé, é muito, mas muito mais do que um "stunt publicitário" para uma grande marca de surf.


Ser cool, é estar, e ser, de verdade.


Não me leve a mal Tozé, mas isto tinha de ser dito.


Um abraço.”

 

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