quinta-feira, abril 03, 2014

PENICHE: TERRA PRISIONEIRA E ACULTURADA


Uns quantos dias após o 25 de Abril de 1974 encontrei o Zé Rosa e conversámos sobre os dias que estávamos a viver. Num ponto ambos concordámos. Passada a euforia e grandiloquência daqueles momentos únicos, quando a poeira assentasse, haveria que pensar bem nas nossas atitudes e contribuir com os nossos actos, para que aqueles que tivessem dúvidas percebessem que o  que lhes era ofertado pelos militares de Abril, era um mundo de liberdade, sonho e esperança que merecia ser partilhado por todos. Nessa tarde solarenga no jardim público de Peniche, foi esse o nosso brinde pelo novo Portugal que recomeçava naqueles dias. Companheiros de muitas lutas e esperanças traçamos assim o que era o nosso desejo para o futuro de Peniche e de Portugal.

Recordo este momento como corolário de um tempo que se viveu em Peniche (cidade) desde os meus 16/17 anos que é quando começo a ter alguma consciência social. Na década de 60 do século XX, Peniche para a generalidade dos seus habitantes era muito pouco. Recordemos o que arrastava um número de pessoas relevantes nessa altura.
Em primeiro lugar a Igreja católica e as suas diversas manifestações como procissões, missas, peregrinações.
Depois o Grupo Desportivo com as disputas mais ou menos acesas quando se tratavam de jogos com o Caldas, o Torriense e mais em tom de festa com o Académico de Viseu.
Tínhamos periodicamente o Carnaval que se animava quando em ano de crise, sendo os bailes nas diversas colectividades momentos de grande agitação de massas.
Deixem-me pensar o que tínhamos mais. Uns jogos de cartas aos domingos em tabernas. Que no período do defeso se estendiam por meses. E tínhamos as actividades cénicas na Associação e no Centro Paroquial. Pretexto usado por uns e umas quantas para saírem à noite e terem encontros fugazes para além do que era habitual. Os dias repetiam-se iguais e monótonos, cinzentos e de poucas perspectivas para quem olhasse um pouco mais para lá do istmo que nos afogava.

Do ponto de vista cultural eram poucos os que tinham algo mais do que a 4ª classe. A Escola Comercial e Industrial eram para uns quantos e ultrapassar esse estádio era só para os filhos dos “ricos” que na época eram muito poucos.
As mulheres dividiam-se entre os afazeres de casa, o tratamento do peixe nas lojas da Ribeira, as fábricas de conserva e algumas em estabelecimentos comerciais pouco significativos.
Não é de admirar que a vida em Peniche na década de 60 fosse isto. Se recuássemos para a década de 50 seria ainda mais monótono.
Este viver (?) não era fruto do acaso. Recordo que em Peniche na época existiam todo o tipo de forças policiais do regime do Estado Novo: Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana, Guarda Fiscal, Polícia Internacional e de Defesa do Estado, Acção Nacional Popular, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa. A Legião extinta no início dos anos 60 por falta de motivação dos seus participantes, veio a dar lugar ou a mais uns quantos desocupados ou em outros casos vieram a engrossar as fileiras dos informadores da polícia política.
Tudo isto veio a condicionar toda e qualquer actividade associativa ou social que tentasse ultrapassar os limites do puramente recreativo.

Claro que existiam casos de pessoas que por razões pessoais ou de afinidades profissionais com colegas de trabalho mais politizados ultrapassavam o marasmo daquilo que se vivia em Peniche. Alguns conseguiam motivar mais alguns trabalhadores da pesca ou conserveiros para algumas atitudes um pouco mais ousadas.
Nessa época o que de mais relevante se conseguiu atingir em termos de motivações cívicas terá eventualmente sido aquilo que se culturalmente se veio a desenvolver quer através do CICARP, quer da HÚMUS, num caso um cineclube e no outro uma Cooperativa Livreira. O 1º foi encerrado por força de uma dinâmica concertada entre a PIDE/DGS e alguns elementos da ANP que faziam parte da direcção da Associação Recreativa Penichense. A 2ª veio a ver coarctada uma parte das suas valências por força de uma acção desenvolvida pelo Governo de Marcelo Caetano.
Da década de 60 e do início dos anos 70 até ao 25 de Abril, posso falar descrevendo Peniche como uma terra amordaçada e sem quaisquer motivações políticas de oposição ao regime relevantes e que movimentassem um número significativo de elementos da população.

Tentar agora pintar um quadro diferente deste é uma “história” bonita para emoldurar um período perturbador para as gentes de Peniche, sendo que as limitações a vivências mais empenhadas politicamente vinham de todos os lados para as gentes que se ocupavam fundamentalmente na luta pela sua sobrevivência diária.

Claro que houve sempre pessoas que conseguiram ultrapassar o medo e alojar familiares de presos políticos que aqui vinham visitar os seus entes queridos  detidos na Fortaleza/Prisão. Nuns casos por consciência política e noutros porque o aluguer de quartos representava em si mesmo mais alguns tostões a acrescentar ao seu reduzido pecúlio.
Peniche e a sua população não necessitam que tracem um quadro dourado sobre o que aqui aconteceu no período do Estado Novo. Todos precisamos de ser respeitados e que se desenvolvam as linhas mestras do seu desenvolvimento para que os nossos filhos tenham um futuro promissor que parece tardar.      

 

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