sexta-feira, dezembro 09, 2016


(RE)PUBLICO aqui a OPINIÃO de FRANCISCO SENA SANTOS in "SAPO24"
que julgo deveria merecer a melhor atenção de todos nós. Para além de ser importante pensar nestas coisas num tempo em que tudo está a ser cada vez mais superficial.
A CRISE EXISTENCIAL
A promessa tinha sido de bem-estar e liberdade mas o que passou a sentir-se crescer nas sociedades ocidentais foi um mal-estar que também põe em causa algumas das liberdades. Os cidadãos fartaram-se de se sentirem negligenciados e estão a usar toda a forma de votação ao seu alcance para fazerem afastar quem entendem que representa o sistema político que anda a dar cabo da confiança prometida.Parte superior do formulário

É assim que nos últimos sete meses já foram mandados para casa dirigentes políticos como Dilma, Cameron, Hillary, Hollande, Sarkozy, Juppé e agora Renzi. Os eleitores arriscaram, em alguns dos casos, escolhas de alternativas que até podem parecer menos racionais para o bem comum. Talvez votem mais com as tripas do que com a cabeça. Estão a querer castigar quem aparece como responsável imediato pela frustração. O modelo das sociedades ocidentais está em crise existencial.

Os tremendos banhos de sangue da primeira metade do século XX já parecem uma coisa demasiado distante, fora da memória que magoa. Tinha sido a aspiração de evitar de vez esses infernos das grandes guerras o que levou uma mão cheia de estadistas a procurarem políticas geradoras de boa convivência, de progresso e de esperança. Assim avançou a União Europeia ao longo das últimas três gerações. Mas, na viragem para este século XXI, tornou-se evidente que a política começava a perder a mão da liderança, o mando passava para o mundo da finança. Deixou de se sentir a visão de líderes como os que tinham merecido o estatuto de estadistas. É assim que a Europa começou a renunciar à ambição generosa que tinha sido alimentada. A crise dos refugiados é um exemplo dessa derrota europeia: ao negar-lhes a solidariedade a Europa renuncia aos seus valores fundadores. É a tal crise existencial mas que não é crise de participação dos cidadãos.

Em Itália, no último domingo, num referendo que até nem parecia colocar em escolha questões com implicações imediatas na vida das pessoas, votou quase 70% do eleitorado, mais de 33 milhões de cidadãos. Renzi tinha chegado ao poder em fevereiro de 2014 e, tal como os antecessores, através de arranjos políticos, sem passar por eleições gerais. Conduziu políticas generosas, designadamente face aos refugiados, conseguiu introduzir alguma eficiência na gestão do tradicional caos italiano e ousou uma reforma profunda, mas pouco concertada, do armadilhado sistema político do país. Deslumbrou-se e arriscou o que não precisava de fazer: jogar a sua liderança política no referendo assim transformado em plebiscito. Mostrou falta de escrúpulo ao tentar uma jogada para consolidar o seu poder. Caiu no mesmo erro de cálculo que levou à queda de Cameron no referendo Brexit há sete meses no Reino Unido: Renzi, como Cameron, pensou que poderia usar o referendo para reforçar e ampliar o poder da sua liderança. Os votantes castigaram-lhes o impulso arrogante.

Por todo o mundo ocidental, nestes tempos de cólera, cresce a vontade de afastar as castas políticas. Parece que estamos num tempo medíocre de pós-política, em que a política com raízes, com substância culta é desprezada e o voto tem orientação anti-política.

É facto que no caso italiano não se vê no horizonte alguma solução que prometa vida melhor. Renzi não tem um rival. Para já, a oportunidade é para as forças políticas que querem agitar e desagregar mais a Europa, o neofascista Matteo Salvini (Liga Norte) e o populista Beppe Grillo (M5E). São eles quem mais está a celebrar, embora quase todos à direita e à esquerda estejam a festejar a derrota de Renzi. As candidatas do M5E ganharam em maio as municipais em Roma e em Turim. Seis meses depois, a gestão é reconhecida como continuação do desastre. Mas as sondagens continuam a favorecer o M5E, um movimento que é difícil situar em qualquer dos hemisférios políticos, tem escolhas radicais de esquerda e outras de direita, trata sobretudo de dizer o que agrada aos eleitores. Quando houver eleições é possível que fique na frente. Para governar com quem? Se chegar à liderança política, Grillo vai levar por diante a ideia de referendar a participação da Itália na moeda única europeia? Seja como for, não se pode ver no resultado deste referendo qualquer desapego italiano em relação à União Europeia de que os italianos são fundadores com idealismo que faz de locomotiva. No referendo levantou-se sobretudo um voto de protesto contra um primeiro-ministro que não só não gerou o bem-estar que prometia como queria demasiado poder. Mas a Itália política, que já conta 41 chefes de governo em 70 anos, habituou-nos a que tudo ali é possível.

Houve alguma dramatização em volta deste referendo italiano. As inquietações parecem exageradas. Nada que se compare com o efeito do Brexit que fez a libra cair 10% logo no dia seguinte, e ainda não recuperou. Com a Itália todos os indicadores seguem sem drama maior. Há o problema sério da estabilização da banca italiana – o Monte dei Paschi, já com cinco séculos, precisa de cinco mil milhões – mas também já se viu que Mario Draghi vai continuar a colocar o BCE a garantir o que for preciso para evitar colapsos.

O fim de semana político até foi estimulante para a cidadania europeia: os austríacos surpreenderam e derrotaram as sondagens e o candidato Hofer, formado em técnicas de comunicação, cujo perfil político é, sem rodeios, o de um neonazi, e entregaram a presidência a um respeitável professor de economia, cheio de fleuma e humor, Van der Bellen, um veterano líder ecologista que se assume filho de refugiados que fugiram do estalinismo, o pai aristocrata russo e a mãe báltica. Mas não deixa de intrigar que os tradicionais partidos centrais, o social-democrata e o popular, tenham ficado fora da presidencial austríaca. Dentro de ano e meio há legislativas na Áustria e a extrema-direita segue na frente. Será que então os eleitores austríacos vão ter outro sobressalto pelos valores democráticos da Áustria pró-europeia?

Por agora, ou bem que há algum bom sobressalto que faça avançar novas visões ou a ideia de Europa solidária naufraga nesta crise existencial. Será que Merkel, depois de ter sido a mal-amada, é a estadista que pode mudar as coisas? O discurso da chanceler, hoje, no congresso da CDU em Essen, pode dar pistas, a 10 meses de clarificadoras eleições gerais alemãs.

 

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