segunda-feira, dezembro 05, 2016


AINDA A MINHA RUA

Olho para a minha rua e revejo-me no tempo que passou. Resto eu e a D. Lelé Salvador desses tempos dos idos de 40 e 50 do século passado.

Volto a esses tempos pelas razões mais absurdas. Ou talvez não. Ainda ouço os sons das vozes da Maria da Boa Viagem e do Tóino Roncolho como nós o chamávamos pelo som característico da sua voz.
Ainda sinto o palpitar da rua lá de trás onde tinha mais amigos a juntar aos da minha porta. O Idinho e o Zezé faziam parte do grupo mais próximo. Quantas vezes fazíamos incursões ao Jardim para jogar ao berlinde.
Em minha casa ou na casa da minha avó, ouço os gritos estridentes da Maria Algarvio desaparecida no ano em que nasceu a minha filha. Abria a porta do quintal e chamava:

“- Menina Guilhermina? Posso tirar água?” Num tempo em que só muito poucos tinham água canalizada. A grande maioria das pessoas da minha rua ia à bica do largo de S. Paulo.
Na minha rua palpitavam os sons das mulheres que em casa tratavam das suas lides, as rendas de bilros, os almoços para os filhos e seus homens. Iam e vinham a caminho da loja do Zé Ferreira. Ou ao depósito do vinho.

Começava muito cedo o dia na minha rua. Viúvas e não só tinham a missa das almas às 6 da manhã.

Depois era o dia-a-dia das mulheres que trabalhavam na ribeira e dos seus maridos que iam para o mar. Os filhos ou iam para a Escola (os mais afortunados), ou iam para a Ribeira tentar arranjar uns peixes na “cadonga”.

Gosto da minha rua. E quando passo nela sinto todos esses sons que me trazem de volta os meus amigos de criança. O Chico Zé e o Fanana. O Tozé e o Rebordão. O Marciano, O Jacinto e o Alberto. O Xico Marques. Todos eles pertenciam à “companhia” do Zé Acúrsio. E era vê-los em lutas campais com o pessoal do Campo de Torre e os do campo do Zé Seco. Em épocas sazonais dedicavam-se a apanhar pássaros à palma com “chamarizes” que cuidavam com carinho apesar da sua brutalidade inata.    

Recordo o meu pai a vir da oficina e a minha mãe a chamar-me para o almoço. Recordo tantas raparigas que nesse tempo aprendiam a costura com a minha mãe e que colaboraram com os seus cuidados na minha educação.

A minha rua foi e é o meu porto seguro. 

 

1 comentário:

Unknown disse...

Caro José Maria,

Uma vez mais fico fascinado com as suas histórias ou estórias (um dia já lhe disse que deveria escrever um livro de memórias. Felizmente ainda sou do tempo do pião, do berlinde, das corridas de caricas, do jogo da macaca, das meninas a saltarem ao elástico, do jogo da banca no campo da torre.....
Felizmente ainda sou do tempo em que o peixe era carregado pelas varinas em cima da cabeça, transportado pelas ruas nas antigas "motoretas" carregadas de sardinha....
Felizmente ainda sou do tempo em que andar na rua era seguro e o respeito pelos mais velhos era lei....
Felizmente ainda sou do tempo em que os meus avós e os meus pais me ensinaram que a vida é simples e deve ser assim vivida e que as memórias existem para nos recordar que assim deve ser !!

Julgo que a fronteira do ano 2000, veio alterar tanto e para pior, enfim que nos falham as recordações.

Um bem haja a si por nos fazer recordar !!

Obrigado,

Manuel Salvador