terça-feira, março 20, 2007

ESTOU SEM PALAVRAS...

Ontem dia do Pai, pessoa amiga postou um comentário(?) que não resisto a reproduzir na íntegra, dando-lhe honras de 1ª Página. Sem mais palavras...
Gaivota-
«Nuvem branca que se desfia, sinal de grande ventania», sentenciara, na véspera, o Tio João Morcego, encostado à muralha da Ponte Nova e seguindo com os olhos piscos a «sarabanda dos astros», como ele lhe chamava.
E o certo é que tinha razão na sua profecia, O novo dia apontara de sobrolho carregado, e no céu, laivado de fogo e cinza, nuvens algodoadas e negras corriam impelidas por um Sudoeste forte, fortíssimo, que tudo parecia querer levar pelos ares.
Desde madrugada que os moços, andavam numa roda-viva, tesa aqui, laça acolá, a travarem as amarrações, não fosse o mar, que estava a arrepiar-se, fazer das suas.
Na doca, ao ranger das embarcações que, mercê de grossos cabos, se aguentavam com os enchios, juntava-se a gritaria dos homens do mar, atarefados em pôr os barcos a salvo de qualquer encosto que lhes abrisse lenha.
Nesse tempo – já lá vão trinta anos – ainda os molhes de abrigo não passavam de um discutido sonho em que os marítimos mais velhos de Peniche pouco acreditavam.
Podia lá ser – diziam. - se no Brandal ali a quatro remadas de terra, o mar tinha mais de dez braças de fundo! Fazer uma muralha! Experimentassem. Ainda haviam de chorar pelas pedras do Ilhéu: isso sim, é que era um abrigo ali posto pela Natureza a proteger como ne¬nhum outro Portinho do Revés.Igualmente pensava o bom do Tio João Morcego - João Baptista de seu nome, - assim chamado pela facilidade com que nas noites mais escuras, na proa do barco, alapardado de bruços, descobria os cardumes na pesca à ardente e ao saltido.
Não compreendia, portanto, as lamentações dos mais novos, dos mais esperançosos. dos mais crédulos, nessa manhã ensudoestada em que o mar crescia de minuto para minuto, enovelando-se de força, espumando de fúria e ameaçando galgar a praia de lés a lés, como de anos em anos acontecia, transformando a península numa ilha e avariando ou destruindo quantos cascos se encontravam encalhados no areal do istmo.
Para que diabo estão vocês com essas patranhas? – interrogava, nervoso, o João Morcego. Se fizessem o tal quebra-mar de que falam, isto havia de dar -se da mesma maneira. Se fizessem, ouviram? Que essa coisa não cabe cá debaixo do barrete.
Os outros ripostavam que não; que os engenheiros lá sabiam e que aquilo assim não podia continuar: um porto aberto a toda a vagaria.
E enquanto novos e velhos trocavam acaloradas opiniões, a ponte ia-se enchendo de curiosos observadores da barulhenta azáfama que fervilhava na doca.
Era perto do meio-dia e o mar continuava a crescer. Tomavam-se precauções. Todos previam o que ia novamente dar-se: os mares de baixo e de cima a juntarem-se, a destruírem as dunas, a arrastarem os barcos encalhados na praia - uma desgraça. . .
Até ali, cada moço tinha cuidado da segurança do que estava à sua guarda. Havia-se recolhido tudo o que estava ao-de-fora, e a doca transformara-se numa complicada teia de cabos.
Agora, que o perigo se avizinhava das traineiras e das lanchas encalhadas, todos acorriam à praia a auxiliarem o trabalho de fixar amarras aos barcos desprevenidos.
Estava-se a meia enchente da maré. Mais umas duas horas e tudo seria mar de lado a lado.
Arrastaram-se as lanchas e as chatas, mais leves, e prenderam-se como foi possível as poucas traineiras em seco.
Abandonado por todos, um velho casco de traineirinha pequena, que fora da pesca do alto, não mereceu de ninguém a esmola de uma ponta de cabo, de uma espia, de uma tralha, de um cuidado.
Para quê, se ele já não ia ao mar; se estava para ali a apodrecer e a servir de palco ao rapazio nas suas descuidadas brincadeiras, nas suas imaginárias aventuras marítimas?
O costado, já viúvo de tinta. Reconhecia-se ainda que fora verde. E o nome, gravado a formão pelo calafate, distinguia-se bem¬ - GAIVOTA.
Só um homem, amparado ao corrimão das escadinhas da ponte, o olhava com ternura, com mágoa, com medo - o João Morcego.
O Gaivota era seu. Nele pescara mais de dez anos… mas a sorte não o favorecera. O barquito entrara a avariar-se. Custaria cara uma reparação; ele não tinha posses; e mesmo, diziam, que já não a merecia. Por outro lado, também ele se sentia sem forças para continuar naquela labuta da pesca. Estava velho, cansado. Por isso o Gaivota ficara na praia. Talvez ainda dessem por ele alguma coisa... Mas dois anos passaram e, agora, realmente, já nada valia, já não servia para nada.Quantas recordações o Gaivota evocava ao triste João Morcego! … O alvoroço em que andou enquanto o Chico Calafate o não deu pronto...
- Ó Chico, vê lá esse cavername; eu quero um barco para aguentar vaga; e fino de proa, que corte mar que nem uma faca, ou¬viste? A cana do leme, valente. E bem tareado de popa. Vê lá Chico, o que me arranjas para aí…
E que bonito, quando saiu do estaleiro! No bota-a-baixo foi uma festa rija…
E o João Morcego, alheado do mais que o rodeava, parecia ainda ver o seu Gaivota, Campo da Torre abaixo, três juntas de bois adiante, à sirga do meio, e um ror de gente ao bojo. Ele aos panais e a cantar a ordem de força:
- Ó salha... ó pega de roda... é... agora é que vai?.. E lá avançava mais uns metros a caminho da rampa da Fortaleza. Novas posições, os panais de trás mudados para a frente, e outro esticão: - O salha. " ó pega de roda. .. ó... agora é que vai!... Assim entrara na água. E que lindo!
Até o Abreu, o cabo de mar, quando foi da vistoria lhe dissera: - O João Morcego, que bonito barco que ele ficou!
Na experimenta, foi uma alegre função na Berlenga Grande. O Gaivota todo embandeirado da proa à ré. Houve convidados; os ra¬pazes do estaleiro, os da oficina do Zé Ginja, a família do compadre Rocha, coitado, que já lá estava na Terra-da-Verdade, e outros, muitos outros de que o João Morcego se ia lembrando, entregue como estava ao desfiar do seu rosário de recordações.A vagaria galgava já pela praia dentro e lambia os barcos encalhados.
O Gaivota, mais pequeno e vazio, começou a baloiçar. Uma onda mais atrevida moeu-o, atravessou-o, bojo a oferecer-se aos cachões que viessem. Seria o fim. O mar arrastá-lo-ia, acabando por despedaçá-lo…
Os olhos do João Morcego embaciaram-se; sentiu que duas lágri¬mas lhe rolavam pelas faces enrugadas, curtidas pelo sol e pela maresia...Levou a mão ao barrete, que puxou mais para trás; endireitou-se, como a medir as suas próprias forças... e tomou uma resolução: Arrancou das mãos de um rapaz, que lhe estava próximo, uma vara comprida e forte, e de água a dar-lhe pelo peito foi ao encontro do Gaivota.
De terra, lançaram-lhe gritos de espanto e de censura:
- Que vai você fazer, homem de Deus?!
-Tio João, volte para trás; você quer matar-se, tio João?! Mas, o velho nada ouvia. E caminhava, a vara alçada nos braços, direito ao seu barco.Uma onda mais alta enrolara-o na sua frente. Ouviu-se um grito por toda a ponte, mas o João Morcego reapareceu, corajoso, na boca um sorriso de esperança, como que uma alegria de criança inconsciente do perigo a que se expunha. Nadou umas braças auxiliado pela vara, deitou a mão à borda e saltou para dentro do velho casco. Gritava como se desse ordens à companha. Contava os mares. Ele sabia que de sete em sete viria um maior. Desatravessara a embarcação, popa feita às vagas, pronto a encarreirar, a fugir da rebentação.
Uns quantos homens nadam em direcção ao Gaivota, presos pela cintura a espias que outros seguram da terra. Vão para salvar de morte certa o temerário velho que salta lesto de bombordo para estibordo, a governar o barco, fincando a vara na areia que se revolve, mordida pelas vagas impiedosas e cada vez maiores.
Uma campa-de-mar rebentou-lhe na popa e levantou-o, dando a ideia de que tudo estava perdido. Mas, o João Morcego, fazendo da vara leme, conseguiu que ele encarreirasse mais de cem metros, indo parar, de novo atravessado, à tona de água em frente das escadinhas.
Alguns destemidos meteram-se, então, pelo mar dentro e atiraram cabos que o João Morcego apanhou, rápido, amarrando-os aos cabeços, febrilmente.
Aproveitaram um enchia para o puxarem para dentro da doca. Trouxeram às costas, para terra, o João Morcego, exausto, arfando de cansaço, encharcado… mas feliz.
O Gaivota não morrera ainda daquela! …
Choviam as perguntas e as recriminações.
-Por que diabo fez você isto?!
Você é doido, homem; arriscar a vida por um calhambeque que não vale nada, que já nem pode ir ao mar…
E o Tio João, entre soluções concordava:
-É verdade, já não pode ir ao mar... E eu também já não posso ir ao mar. " Não prestamos para nada... É talvez por isso que eu lhe quero tanto.
***
Ao outro dia não se falava de outra coisa.
Que loucura e que valentia a do Tio João Morcego!
E que amor ele tinha ao seu barco!
Os filhos e os netos resolveram dar-lhe uma grande alegria. Falaram com o Chico Calafate. O barco ia ser reparado; comprava-se um motor ainda em bom estado; o João - neto mais novo do velho Morcego - iria governá-lo...
É assim o coração dos homens do mar!
Pouco se aproveitou além da quilha e umas cavernas da proa. Mas uma manhã de Abril, passados seis meses, o Gaivota era de novo deitado-a-baixo para fazer-se ao mar, pintado de verde, como antigamente.
E o bom e corajoso velho, lá estava no Portinho do Meio, a levar o faquim ao neto e a desejar boa viagem e boa pesca, com lagrimazinhas a bulirem-lhe os olhos pequeninos -aqueles olhos que, quando era novo, viam de noite como nenhuns outros.Já com o Gaivota em andamento, o mestre, sorridente, gritou-lhe de bordo:
- Ó Avô, vossemecê está a chorar que nem uma varina?!
E o João Morcego, limpando os olhos à manga da camisola e sentando-se na borda de uma lancha, respondeu baixinho, como se falasse de si para consigo:
-É de contentamento... Não está mais na minha mão...
MARIANO, Vicente in “I Jogos Florais da Vila de Peniche” [Comemorações do 350º aniversário da elevação de Peniche e sede de concelho MDCIX – MCMLIX]
11:54 PM

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