quinta-feira, maio 27, 2010

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Dei hoje comigo de tarde a ler um dos livrinhos que foram distribuídos com o “i”. Aquele a que me refiro é o “Aviso por Causa da Moral e outros Textos” do Álvaro de Campos. Eu recomendaria que esta pequena brochura fosse dada no 12º Ano. E mais nenhuma outra. Durante o ano lectivo os estudantes deveriam trabalhar estes pequenos textos até assumirem através da escrita que os tinham compreendido e que os viviam na prática escolar.
De todos os que (re)li esta tarde escolhi um para vos transmitir. Que a sua leitura permita usufruírem com o mesmo prazer que eu senti, o facto de poderem ler. Proponho que façam esta leitura de um fôlego só e verão como tudo faz sentido. Depois, porque o texto a isso o convida, mastiguem a leitura e verão que tudo se adensa até que no fim sentimos estar libertos. Neste tempo de dúvidas e dificuldades é um bom texto para nos sentirmos pessoas.

Ambiente
Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nos sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.

Um deus, no sentido pagão, isto é, verdadeiro, não é mais que a inteligência que um ente tem de si próprio, pois essa inteligência, que tem de si próprio, é a forma impessoal, e por isso ideal, do que é. Formando de nós um conceito intelectual, formamos um deus de nós próprios. Raros, porém, formam de si próprios um conceito intelectual, porque a inteligência é essencialmente objectiva. Mesmo entre os grandes génios são raros os que existiram para si próprios com plena objectividade.

Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrem de fora, e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro, tanto que é o lado de fora que se vê.

Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente.

Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam piões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.

Fingir é conhecer-se.

In “Presença” nº5. Coimbra, 4 de Junho de 1927

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