"Conversar em Peniche" não é necessariamente conversar sobre Peniche. Também mas não só. Algumas vezes assumirá um papel de raiva. Ou de guerra. Será provocador qb. Comprometido. Não será isento nem de erros nem de verdades (os meus, e as minhas). O resto se verá...
segunda-feira, março 19, 2007
PAI!!!
2 comentários:
Anónimo
disse...
Queria enviar-lhe este texto que me comoveu, ao lê-lo. Não é propriamente um comentário, já se vê! Mas..., e porque não?!... Até breve.
Gaivota
- «Nuvem branca que se desfia, sinal de grande ventania», sentenciara, na véspera, o Tio João Morcego, encostado à muralha da Ponte Nova e seguindo com os olhos piscos a «sarabanda dos astros», como ele lhe chamava. E o certo é que tinha razão na sua profecia, O novo dia apontara de sobrolho carregado, e no céu, laivado de fogo e cinza, nuvens algodoadas e negras corriam impelidas por um Sudoeste forte, fortíssimo, que tudo parecia querer levar pelos ares. Desde madrugada que os moços, andavam numa roda-viva, tesa aqui, laça acolá, a travarem as amarrações, não fosse o mar, que estava a arrepiar-se, fazer das suas. Na doca, ao ranger das embarcações que, mercê de grossos cabos, se aguentavam com os enchios, juntava-se a gritaria dos homens do mar, atarefados em pôr os barcos a salvo de qualquer encosto que lhes abrisse lenha. Nesse tempo – já lá vão trinta anos – ainda os molhes de abrigo não passavam de um discutido sonho em que os marítimos mais velhos de Peniche pouco acreditavam. Podia lá ser – diziam. - se no Brandal ali a quatro remadas de terra, o mar tinha mais de dez braças de fundo! Fazer uma muralha! Experimentassem. Ainda haviam de chorar pelas pedras do Ilhéu: isso sim, é que era um abrigo ali posto pela Natureza a proteger como ne¬nhum outro Portinho do Revés. Igualmente pensava o bom do Tio João Morcego - João Bap¬tista de seu nome, - assim chamado pela facilidade com que nas noites mais escuras, na proa do barco, alapardado de bruços, descobria os cardumes na pesca à ardente e ao saltido. Não compreendia, portanto, as lamentações dos mais novos, dos mais esperançosos. dos mais crédulos, nessa manhã ensudoestada em que o mar crescia de minuto para minuto, enovelando-se de força, es¬pumando de fúria e ameaçando galgar a praia de lés a lés, como de anos em anos acontecia, transformando a península numa ilha e ava¬riando ou destruindo quantos cascos se encontravam encalhados no areal do istmo. Para que diabo estão vocês com essas patranhas? – interrogava, nervoso, o João Morcego. Se fizessem o tal quebra-mar de que falam, isto havia de dar -se da mesma maneira. Se fizessem, ouviram? Que essa coisa não cabe cá debaixo do barrete. Os outros ripostavam que não; que os engenheiros lá sabiam e que aquilo assim não podia continuar: um porto aberto a toda a vagaria. E enquanto novos e velhos trocavam acaloradas opiniões, a ponte ia-se enchendo de curiosos observadores da barulhenta azáfama que fervilhava na doca. Era perto do meio-dia e o mar continuava a crescer. Tomavam-se precauções. Todos previam o que ia novamente dar-se: os mares de baixo e de cima a juntarem-se, a destruírem as dunas, a arrastarem os barcos encalhados na praia - uma desgraça. . . Até ali, cada moço tinha cuidado da segurança do que estava à sua guarda. Havia-se recolhido tudo o que estava ao-de-fora, e a doca transformara-se numa complicada teia de cabos. Agora, que o perigo se avizinhava das traineiras e das lanchas encalhadas, todos acorriam à praia a auxiliarem o trabalho de fixar amarras aos barcos desprevenidos. Estava-se a meia enchente da maré. Mais umas duas horas e tudo seria mar de lado a lado. Arrastaram-se as lanchas e as chatas, mais leves, e prenderam-se como foi possível as poucas traineiras em seco. Abandonado por todos, um velho casco de traineirinha pequena, que fora da pesca do alto, não mereceu de ninguém a esmola de uma ponta de cabo, de uma espia, de uma tralha, de um cuidado. Para quê, se ele já não ia ao mar; se estava para ali a apodrecer e a servir de palco ao rapazio nas suas descuidadas brincadeiras, nas suas imaginárias aventuras marítimas? O costado, já viúvo de tinta. Reconhecia-se ainda que fora verde. E o nome, gravado a formão pelo calafate, distinguia-se bem¬ - GAIVOTA. Só um homem, amparado ao corrimão das escadinhas da ponte, o olhava com ternura, com mágoa, com medo - o João Morcego. O Gaivota era seu. Nele pescara mais de dez anos… mas a sorte não o favorecera. O barquito entrara a avariar-se. Custaria cara uma reparação; ele não tinha posses; e mesmo, diziam, que já não a merecia. Por outro lado, também ele se sentia sem forças para continuar naquela labuta da pesca. Estava velho, cansado. Por isso o Gaivota ficara na praia. Talvez ainda dessem por ele alguma coisa... Mas dois anos passaram e, agora, realmente, já nada valia, já não servia para nada. Quantas recordações o Gaivota evocava ao triste João Morcego! … O alvoroço em que andou enquanto o Chico Calafate o não deu pronto... - Ó Chico, vê lá esse cavername; eu quero um barco para aguentar vaga; e fino de proa, que corte mar que nem uma faca, ou¬viste? A cana do leme, valente. E bem tareado de popa. Vê lá Chico, o que me arranjas para aí… E que bonito, quando saiu do estaleiro! No bota-a-baixo foi uma festa rija… E o João Morcego, alheado do mais que o rodeava, parecia ainda ver o seu Gaivota, Campo da Torre abaixo, três juntas de bois adiante, à sirga do meio, e um ror de gente ao bojo. Ele aos panais e a cantar a ordem de força: - Ó salha... ó pega de roda... é... agora é que vai?.. E lá avançava mais uns metros a caminho da rampa da Fortaleza. Novas posições, os panais de trás mudados para a frente, e outro esticão: - O salha. " ó pega de roda. .. ó... agora é que vai!... Assim entrara na água. E que lindo! Até o Abreu, o cabo de mar, quando foi da vistoria lhe dissera: - O João Morcego, que bonito barco que ele ficou! Na experimenta, foi uma alegre função na Berlenga Grande. O Gaivota todo embandeirado da proa à ré. Houve convidados; os ra¬pazes do estaleiro, os da oficina do Zé Ginja, a família do compadre Rocha, coitado, que já lá estava na Terra-da-Verdade, e outros, muitos outros de que o João Morcego se ia lembrando, entregue como estava ao desfiar do seu rosário de recordações. A vagaria galgava já pela praia dentro e lambia os barcos enca¬lhados. O Gaivota, mais pequeno e vazio, começou a baloiçar. Uma onda mais atrevida moeu-o, atravessou-o, bojo a oferecer-se aos cachões que viessem. Seria o fim. O mar arrastá-lo-ia, acabando por despedaçá-lo… Os olhos do João Morcego embaciaram-se; sentiu que duas lágri¬mas lhe rolavam pelas faces enrugadas, curtidas pelo sol e pela maresia... Levou a mão ao barrete, que puxou mais para trás; endireitou-se, como a medir as suas próprias forças... e tomou uma resolução: Arrancou das mãos de um rapaz, que lhe estava próximo, uma vara comprida e forte, e de água a dar-lhe pelo peito foi ao encontro do Gaivota. De terra, lançaram-lhe gritos de espanto e de censura: - Que vai você fazer, homem de Deus?! -Tio João, volte para trás; você quer matar-se, tio João?! Mas, o velho nada ouvia. E caminhava, a vara alçada nos braços, direito ao seu barco. Uma onda mais alta enrolara-o na sua frente. Ouviu-se um grito por toda a ponte, mas o João Morcego reapareceu, corajoso, na boca um sorriso de esperança, como que uma alegria de criança inconsciente do perigo a que se expunha. Nadou umas braças auxiliado pela vara, deitou a mão à borda e saltou para dentro do velho casco. Gritava como se desse ordens à companha. Contava os mares. Ele sabia que de sete em sete viria um maior. Desatravessara a embarcação, popa feita às vagas, pronto a encarreirar, a fugir da rebentação. Uns quantos homens nadam em direcção ao Gaivota, presos pela cintura a espias que outros seguram da terra. Vão para salvar de morte certa o temerário velho que salta lesto de bombordo para estibordo, a governar o barco, fincando a vara na areia que se revolve, mordida pelas vagas impiedosas e cada vez maiores. Uma campa-de-mar rebentou-lhe na popa e levantou-o, dando a ideia de que tudo estava perdido. Mas, o João Morcego, fazendo da vara leme, conseguiu que ele encarreirasse mais de cem metros, indo parar, de novo atravessado, à tona de água em frente das escadinhas. Alguns destemidos meteram-se, então, pelo mar dentro e atiraram cabos que o João Morcego apanhou, rápido, amarrando-os aos cabeços, febrilmente. Aproveitaram um enchia para o puxarem para dentro da doca. Trouxeram às costas, para terra, o João Morcego, exausto, arfando de cansaço, encharcado… mas feliz. O Gaivota não morrera ainda daquela! … Choviam as perguntas e as recriminações. -Por que diabo fez você isto?! Você é doido, homem; arriscar a vida por um calhambeque que não vale nada, que já nem pode ir ao mar… E o Tio João, entre soluções concordava: -É verdade, já não pode ir ao mar... E eu também já não posso ir ao mar. " Não prestamos para nada... É talvez por isso que eu lhe quero tanto.
*** Ao outro dia não se falava de outra coisa. Que loucura e que valentia a do Tio João Morcego! E que amor ele tinha ao seu barco! Os filhos e os netos resolveram dar-lhe uma grande alegria. Falaram com o Chico Calafate. O barco ia ser reparado; comprava-se um motor ainda em bom estado; o João - neto mais novo do velho Morcego - iria governá-lo... É assim o coração dos homens do mar! Pouco se aproveitou além da quilha e umas cavernas da proa. Mas uma manhã de Abril, passados seis meses, o Gaivota era de novo deitado-a-baixo para fazer-se ao mar, pintado de verde, como antigamente. E o bom e corajoso velho, lá estava no Portinho do Meio, a levar o faquim ao neto e a desejar boa viagem e boa pesca, com lagrimazinhas a bulirem-lhe os olhos pequeninos -aqueles olhos que, quando era novo, viam de noite como nenhuns outros. Já com o Gaivota em andamento, o mestre, sorridente, gritou-lhe de bordo: - Ó Avô, vossemecê está a chorar que nem uma varina?! E o João Morcego, limpando os olhos à manga da camisola e sentando-se na borda de uma lancha, respondeu baixinho, como se falasse de si para consigo: -É de contentamento... Não está mais na minha mão...
MARIANO, Vicente in “I Jogos Florais da Vila de Peniche” [Comemorações do 350º aniversário da elevação de Peniche e sede de concelho MDCIX – MCMLIX]
Já falei ctg pai, mas como o dia foi e continua a ser teu... Obrigado por tudo! Obrigada por seres meu amigo e por fazeres o que podes (e não podes) por mim. Sinto-me feliz apenas por ter te a ti e à mãe.
2 comentários:
Queria enviar-lhe este texto que me comoveu, ao lê-lo. Não é propriamente um comentário, já se vê! Mas..., e porque não?!...
Até breve.
Gaivota
- «Nuvem branca que se desfia, sinal de grande ventania», sentenciara, na véspera, o Tio João Morcego, encostado à muralha da Ponte Nova e seguindo com os olhos piscos a «sarabanda dos astros», como ele lhe chamava.
E o certo é que tinha razão na sua profecia, O novo dia apontara de sobrolho carregado, e no céu, laivado de fogo e cinza, nuvens algodoadas e negras corriam impelidas por um Sudoeste forte, fortíssimo, que tudo parecia querer levar pelos ares.
Desde madrugada que os moços, andavam numa roda-viva, tesa aqui, laça acolá, a travarem as amarrações, não fosse o mar, que estava a arrepiar-se, fazer das suas.
Na doca, ao ranger das embarcações que, mercê de grossos cabos, se aguentavam com os enchios, juntava-se a gritaria dos homens do mar, atarefados em pôr os barcos a salvo de qualquer encosto que lhes abrisse lenha.
Nesse tempo – já lá vão trinta anos – ainda os molhes de abrigo não passavam de um discutido sonho em que os marítimos mais velhos de Peniche pouco acreditavam.
Podia lá ser – diziam. - se no Brandal ali a quatro remadas de terra, o mar tinha mais de dez braças de fundo! Fazer uma muralha! Experimentassem. Ainda haviam de chorar pelas pedras do Ilhéu: isso sim, é que era um abrigo ali posto pela Natureza a proteger como ne¬nhum outro Portinho do Revés.
Igualmente pensava o bom do Tio João Morcego - João Bap¬tista de seu nome, - assim chamado pela facilidade com que nas noites mais escuras, na proa do barco, alapardado de bruços, descobria os cardumes na pesca à ardente e ao saltido.
Não compreendia, portanto, as lamentações dos mais novos, dos mais esperançosos. dos mais crédulos, nessa manhã ensudoestada em que o mar crescia de minuto para minuto, enovelando-se de força, es¬pumando de fúria e ameaçando galgar a praia de lés a lés, como de anos em anos acontecia, transformando a península numa ilha e ava¬riando ou destruindo quantos cascos se encontravam encalhados no areal do istmo.
Para que diabo estão vocês com essas patranhas? – interrogava, nervoso, o João Morcego. Se fizessem o tal quebra-mar de que falam, isto havia de dar -se da mesma maneira. Se fizessem, ouviram? Que essa coisa não cabe cá debaixo do barrete.
Os outros ripostavam que não; que os engenheiros lá sabiam e que aquilo assim não podia continuar: um porto aberto a toda a vagaria.
E enquanto novos e velhos trocavam acaloradas opiniões, a ponte ia-se enchendo de curiosos observadores da barulhenta azáfama que fervilhava na doca.
Era perto do meio-dia e o mar continuava a crescer. Tomavam-se precauções. Todos previam o que ia novamente dar-se: os mares de baixo e de cima a juntarem-se, a destruírem as dunas, a arrastarem os barcos encalhados na praia - uma desgraça. . .
Até ali, cada moço tinha cuidado da segurança do que estava à sua guarda. Havia-se recolhido tudo o que estava ao-de-fora, e a doca transformara-se numa complicada teia de cabos.
Agora, que o perigo se avizinhava das traineiras e das lanchas encalhadas, todos acorriam à praia a auxiliarem o trabalho de fixar amarras aos barcos desprevenidos.
Estava-se a meia enchente da maré. Mais umas duas horas e tudo seria mar de lado a lado.
Arrastaram-se as lanchas e as chatas, mais leves, e prenderam-se como foi possível as poucas traineiras em seco.
Abandonado por todos, um velho casco de traineirinha pequena, que fora da pesca do alto, não mereceu de ninguém a esmola de uma ponta de cabo, de uma espia, de uma tralha, de um cuidado.
Para quê, se ele já não ia ao mar; se estava para ali a apodrecer e a servir de palco ao rapazio nas suas descuidadas brincadeiras, nas suas imaginárias aventuras marítimas?
O costado, já viúvo de tinta. Reconhecia-se ainda que fora verde. E o nome, gravado a formão pelo calafate, distinguia-se bem¬ - GAIVOTA.
Só um homem, amparado ao corrimão das escadinhas da ponte, o olhava com ternura, com mágoa, com medo - o João Morcego.
O Gaivota era seu. Nele pescara mais de dez anos… mas a sorte não o favorecera. O barquito entrara a avariar-se. Custaria cara uma reparação; ele não tinha posses; e mesmo, diziam, que já não a merecia. Por outro lado, também ele se sentia sem forças para continuar naquela labuta da pesca. Estava velho, cansado. Por isso o Gaivota ficara na praia. Talvez ainda dessem por ele alguma coisa... Mas dois anos passaram e, agora, realmente, já nada valia, já não servia para nada.
Quantas recordações o Gaivota evocava ao triste João Morcego! … O alvoroço em que andou enquanto o Chico Calafate o não deu pronto...
- Ó Chico, vê lá esse cavername; eu quero um barco para aguentar vaga; e fino de proa, que corte mar que nem uma faca, ou¬viste? A cana do leme, valente. E bem tareado de popa. Vê lá Chico, o que me arranjas para aí…
E que bonito, quando saiu do estaleiro! No bota-a-baixo foi uma festa rija…
E o João Morcego, alheado do mais que o rodeava, parecia ainda ver o seu Gaivota, Campo da Torre abaixo, três juntas de bois adiante, à sirga do meio, e um ror de gente ao bojo. Ele aos panais e a cantar a ordem de força:
- Ó salha... ó pega de roda... é... agora é que vai?.. E lá avançava mais uns metros a caminho da rampa da Fortaleza. Novas posições, os panais de trás mudados para a frente, e outro esticão: - O salha. " ó pega de roda. .. ó... agora é que vai!...
Assim entrara na água. E que lindo!
Até o Abreu, o cabo de mar, quando foi da vistoria lhe dissera: - O João Morcego, que bonito barco que ele ficou!
Na experimenta, foi uma alegre função na Berlenga Grande. O Gaivota todo embandeirado da proa à ré. Houve convidados; os ra¬pazes do estaleiro, os da oficina do Zé Ginja, a família do compadre Rocha, coitado, que já lá estava na Terra-da-Verdade, e outros, muitos outros de que o João Morcego se ia lembrando, entregue como estava ao desfiar do seu rosário de recordações.
A vagaria galgava já pela praia dentro e lambia os barcos enca¬lhados.
O Gaivota, mais pequeno e vazio, começou a baloiçar. Uma onda mais atrevida moeu-o, atravessou-o, bojo a oferecer-se aos cachões que viessem. Seria o fim. O mar arrastá-lo-ia, acabando por despedaçá-lo…
Os olhos do João Morcego embaciaram-se; sentiu que duas lágri¬mas lhe rolavam pelas faces enrugadas, curtidas pelo sol e pela maresia...
Levou a mão ao barrete, que puxou mais para trás; endireitou-se, como a medir as suas próprias forças... e tomou uma resolução: Arrancou das mãos de um rapaz, que lhe estava próximo, uma vara comprida e forte, e de água a dar-lhe pelo peito foi ao encontro do Gaivota.
De terra, lançaram-lhe gritos de espanto e de censura:
- Que vai você fazer, homem de Deus?!
-Tio João, volte para trás; você quer matar-se, tio João?! Mas, o velho nada ouvia. E caminhava, a vara alçada nos braços, direito ao seu barco.
Uma onda mais alta enrolara-o na sua frente. Ouviu-se um grito por toda a ponte, mas o João Morcego reapareceu, corajoso, na boca um sorriso de esperança, como que uma alegria de criança inconsciente do perigo a que se expunha. Nadou umas braças auxiliado pela vara, deitou a mão à borda e saltou para dentro do velho casco. Gritava como se desse ordens à companha. Contava os mares. Ele sabia que de sete em sete viria um maior. Desatravessara a embarcação, popa feita às vagas, pronto a encarreirar, a fugir da rebentação.
Uns quantos homens nadam em direcção ao Gaivota, presos pela cintura a espias que outros seguram da terra. Vão para salvar de morte certa o temerário velho que salta lesto de bombordo para estibordo, a governar o barco, fincando a vara na areia que se revolve, mordida pelas vagas impiedosas e cada vez maiores.
Uma campa-de-mar rebentou-lhe na popa e levantou-o, dando a ideia de que tudo estava perdido. Mas, o João Morcego, fazendo da vara leme, conseguiu que ele encarreirasse mais de cem metros, indo parar, de novo atravessado, à tona de água em frente das escadinhas.
Alguns destemidos meteram-se, então, pelo mar dentro e atiraram cabos que o João Morcego apanhou, rápido, amarrando-os aos cabeços, febrilmente.
Aproveitaram um enchia para o puxarem para dentro da doca. Trouxeram às costas, para terra, o João Morcego, exausto, arfando de cansaço, encharcado… mas feliz.
O Gaivota não morrera ainda daquela! …
Choviam as perguntas e as recriminações.
-Por que diabo fez você isto?!
Você é doido, homem; arriscar a vida por um calhambeque que não vale nada, que já nem pode ir ao mar…
E o Tio João, entre soluções concordava:
-É verdade, já não pode ir ao mar... E eu também já não posso ir ao mar. " Não prestamos para nada... É talvez por isso que eu lhe quero tanto.
***
Ao outro dia não se falava de outra coisa.
Que loucura e que valentia a do Tio João Morcego!
E que amor ele tinha ao seu barco!
Os filhos e os netos resolveram dar-lhe uma grande alegria. Falaram com o Chico Calafate. O barco ia ser reparado; comprava-se um motor ainda em bom estado; o João - neto mais novo do velho Morcego - iria governá-lo...
É assim o coração dos homens do mar!
Pouco se aproveitou além da quilha e umas cavernas da proa. Mas uma manhã de Abril, passados seis meses, o Gaivota era de novo deitado-a-baixo para fazer-se ao mar, pintado de verde, como antigamente.
E o bom e corajoso velho, lá estava no Portinho do Meio, a levar o faquim ao neto e a desejar boa viagem e boa pesca, com lagrimazinhas a bulirem-lhe os olhos pequeninos -aqueles olhos que, quando era novo, viam de noite como nenhuns outros.
Já com o Gaivota em andamento, o mestre, sorridente, gritou-lhe de bordo:
- Ó Avô, vossemecê está a chorar que nem uma varina?!
E o João Morcego, limpando os olhos à manga da camisola e sentando-se na borda de uma lancha, respondeu baixinho, como se falasse de si para consigo:
-É de contentamento... Não está mais na minha mão...
MARIANO, Vicente in “I Jogos Florais da Vila de Peniche” [Comemorações do 350º aniversário da elevação de Peniche e sede de concelho MDCIX – MCMLIX]
Já falei ctg pai, mas como o dia foi e continua a ser teu... Obrigado por tudo! Obrigada por seres meu amigo e por fazeres o que podes (e não podes) por mim. Sinto-me feliz apenas por ter te a ti e à mãe.
Beijinho Grande
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