quarta-feira, julho 02, 2014

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
No dia em que é transladado para o Panteão Nacional o corpo da poetisa, deixo-vos com alguns dos seus poemas que definem quanto a mim a Mulher, a Cidadã, a Artista.


 MAR


I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.


II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.


Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro


Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável


E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão


Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas


- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.



Esta Gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis


Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre


Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo


 


Com Fúria e Raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra 
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sem comentários: