SOPHIA, UMA POETISA DE «CAUSAS»
Com a devida vénia transcrevo uma entrevista de José Manuel dos Santos, que teve a ousadia de lançar a iniciativa de se trasladar o corpo de Sophia para o Panteão Nacional, concedida à Agência Ecclesia. Considero ser esta uma forma mais adequada de alimentarmos o nosso conhecimento sobre a Poeta. Obrigado à Ecclesia e ao José Manuel a quem fico a dever mais uma.
27 de Junho de 2014, às 10:53
Entrevista a José Manuel dos Santos, orador oficial na cerimónia de trasladação
dos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional
O escritor José Manuel dos Santos vai ser o orador oficial na cerimónia de
trasladação dos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen para o
Panteão Nacional. O diretor cultural da Fundação EDP e amigo da família da
escritora fala à Agência ECCLESIA da sua obra e do legado que deixou à
sociedade portuguesa
Agência ECCLESIA (AE) – O que é que esteve
na base desta proposta de trasladação dos restos mortais da poetisa Sophia de
Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional?
José Manuel dos Santos (JMS) – Eu entendo que algum declínio que todos nós sentimos e que nos preocupa nas
democracias ocidentais é acompanhado de uma dessimbolização da própria
democracia, é preciso dar aos símbolos a sua força, o seu valor e a sua função
de exemplo.
E este ano passam 40 anos do 25 de abril e 10 anos da morte de Sophia, uma
grande poeta e cidadã, que por isso reúne em si um valor simbólico que deve ser
apontado à nossa comunidade, a todas as gerações mas também às novas gerações
que ganham em ter conhecimento dessa lição, que foi essa vida e que é, continua
a ser, essa obra.
AE – É justo dizer que as novas gerações
poderão conhecer o nome, mas não o associam ao percurso que a poetisa teve?
JMS – Creio que a Sophia tem
uma situação um pouco singular, toda a gente a conhece por causa das histórias
para crianças.
Ela é uma grande autora de histórias para crianças, e portanto toda a gente
que leu a “Menina do Mar” ou “O Rapaz de Bronze” ficou encantada com aquela
capacidade extraordinária de usar uma linguagem acessível a todos e com aquela
beleza, aquela vibração.
E por isso todas as pessoas, de todas as gerações, conhecem o nome de
Sophia, se não leram as histórias, os filhos ou os netos leram, e isso é um
convite a que conheçam o resto da obra de Sophia.
A poesia de que foi autora é elevadíssima, extraordinária, e também a vida,
uma vida que ela quis sempre ligada à sua própria obra.
Ela dizia que escrevia para salvar a vida, portanto a conceção que ela tem
da poesia não é de uma carreira literária, não é de um lugar proeminente na
sociedade.
Ela dizia: a poesia é para mim uma arte do ser. E por isso eu escrevo para
estar em concordância com a realidade e com o universo.
E desse ponto de vista, é também justo esta ligação entre aquilo que foi o
seu comportamento humano e o que foi a sua obra, a sua vida.
AE – E é isso que é importante propor nos
dias de hoje, daí a importância desta cerimónia?
JMS – Sim, esta cerimónia tem enorme importância porque estamos a falar de alguém
que é, a vários títulos, exemplar. Não é fácil reunir numa só pessoa esta
exemplaridade, uma grande escritora, uma grande mulher, uma grande portuguesa,
uma grande cidadã.
Neste tempo, em que todos nós estamos preocupados com o que está a
acontecer, ela representa uma possibilidade de podermos olhar um pouco acima
das nossas preocupações, não para as ignorarmos mas para arranjarmos a força
que nos permita ultrapassar os obstáculos e as dificuldades que todos estamos a
viver, em Portugal claramente mas também no mundo em geral.
AE – Faz esta análise através da obra
poética de Sophia e daquilo que dela emana, mas também a partir do contacto que
teve com a própria poetisa.
JMS – Sim, eu vi uma
continuidade entre aquilo que ela era, que ela escrevia, e aquilo que ela
pensava, fazia.
Era de facto uma personalidade fascinantíssima, cuja linguagem não tinha
lugares comuns, frases feitas, concessões, e portanto conversar com ela era
quase como ouvir a poesia dela, dita de outra maneira.
Ela dizia que a poesia não precisava de festa de anos, porque precisava de
ser dita, ouvida, todos os dias. E praticava este princípio, havia uma
continuidade absoluta entre o seu viver e o seu escrever.
E isso é também aquilo que se pode assinalar com este ato da trasladação
para o Panteão, em que, de alguma maneira, se vai pôr a memória de Sophia à
altura daquilo que ela deu, que ela soube dar à sua vida e à sua obra.
AE – Tem memórias, acontecimentos
concretos a partir do contacto com ela, que possam exemplificar a discrição que
faz dela?
JMS – Havia nela sempre uma preocupação e uma disponibilidade para aquelas causas
que considerava justas. Antes do 25 de Abril, ela teve um combate
politico-cívico muito importante, disse em várias entrevistas que tinha chegado
à política pelo cristianismo, pela leitura do Evangelho e por esse conceito de
justiça fundamental que há nele.
E a seguir ao 25 de Abril, empenhou-se em ações políticas concretas, quando
achou que essas ações eram importantes, quer no plano nacional quer
internacional.
Ela foi deputada da Assembleia Constituinte, e aí a sua voz aí levantou-se
sempre em defesa dos grandes valores da cultura. Mas foi também mandatária de
candidaturas presidenciais, esteve por exemplo em ações de solidariedade na
altura da luta do povo polaco pela liberdade e democracia.
Portanto, nunca virou a cara, embora parecesse uma pessoa um pouco
despistada e desatenta.
Há muitas histórias sobre as suas distrações, chegava normalmente com um ar
perdido e atrasado a todo o lado, mas depois quando abria a boca e falava era
extraordinário sempre o que dizia.
Eu gosto de dizer que ela estava desatenta e distraída de tudo, menos
daquilo que era importante.
AE – Todo o percurso de Sophia, toda a
luta que ela fez até chegar ao 25 de Abril, não se apagou depois da revolução,
o olhar crítico continuou também depois. Numa determinada entrevista, ela disse
que o 25 de Abril trouxe coisas ótimas no plano político mas no plano cultural
não, dando como exemplos a demagogia, o consumismo, a pressa, as propagandas.
JMS – Sim, ela logo em 1975, 1976, numa carta ao Jorge de Sena, diz-lhe: o que
vai matar a nossa democracia é a sua incompetência cultural. E ela não fez isto
como uma profetiza que está a anunciar o fim de uma coisa que a ela é
indiferente. Pelo contrário, há aqui uma grande preocupação e um grande
empenhamento para que isso não aconteça.
Em toda a sua vida há esse combate. O espirito crítico dela exercia-se
sempre, a palavra dela levantava-se, ouvia-se sempre com sentido critico e
construtivo, para corrigir o que ela achava que estava errado.
Há de qualquer forma, temos de reconhecer, um desencontro dela, que não é
apenas dela, com aquilo em que as sociedades se foram tornando. Sociedades de
consumo exagerado, sociedades de massificação, em que se sabe o preço de tudo e
não se sabe o valor de nada.
E para isso há, quer nos poemas dela quer nas entrevistas que dá, sempre
uma palavra, um alerta, um alarme sobre o que está a acontecer, algo que é
também muito importante ter presente neste momento e neste ano.
AE – A própria consciência cristã dela
brotava precisamente desse espírito. Ela hoje em dia encaixaria naquele título,
que até muitos recusam, de católico progressista?
JMS – Sim, aliás antes da trasladação que vai depois permitir conceder à Sophia
as honras de Panteão Nacional, vai haver simbolicamente a celebração de uma
missa na Capela do Rato. E a Capela do Rato não foi escolhida por acaso, na
vida dela tem um grande significado e simbolismo.
Sendo Sophia uma mulher com um ar frágil, e que como digo, parecia um pouco
fora do mundo, ela tem um combate extraordinário na associação de solidariedade
para com as famílias dos presos políticos. Com o marido Francisco Sousa
Tavares, tem um combate constante pela liberdade, pela justiça, que ela
considerou sempre, sempre inseparáveis.
AE – Próxima do final da vida, ela dizia
que gostava que se realizasse a justiça social, a diminuição da diferença entre
ricos e pobres. A justiça para os pobres era aquilo que mais a preocupava,
dizia mesmo que o resto lhe era indiferente. Isto é um testemunho, uma herança
muito forte.
JMS – É um testemunho fortíssimo, num tempo como o nosso tem que se fazer ouvir a
sua voz. Ela era uma mulher que vinha de uma família privilegiada e considerou
que esse privilégio não lhe dava o direito de humilhar ou de ter alguma
superioridade em relação aos outros.
Pelo contrário, Sophia achou que esse privilégio lhe dava uma
responsabilidade de lutar pela justiça e pelas condições de dignidade humana de
todos. E isso também é uma lição extraordinária.
AE – Como se processou a aprovação desta
iniciativa da trasladação do corpo de Sophia para o Panteão?
JMS – Eu lancei a ideia num
artigo, esse artigo teve alguma repercussão e algum eco e os deputados na
Assembleia da República acolheram essa sugestão, por unanimidade como se
compreende, porque é uma figura em relação à qual não há nenhum reparo, de
nenhuma natureza, a fazer.
Isto é extraordinário, porque há pessoas que conseguem uma espécie de
unanimidade mole e passiva, porque se abstêm, porque se calam, porque não dizem
o que pensam, porque navegam em águas de ambiguidade e de pouca clareza.
Ela sempre foi claríssima, a sua voz disse sempre o que era preciso ser
dito, afrontou quem tinha que afrontar. No entanto fez isso com uma altura, com
uma dignidade, com um sentido humano e cultural, com uma inteligência que levou
a que mesmo aquelas pessoas que, num ou noutro momento podem ter sido objeto da
discordância ou da crítica dela, renderem-se perante a superioridade com que
ela fez sempre essa crítica, ou com que ela fez os reparos que tinha que fazer.
AE – Especificamente em relação ao
programa de dia 2 de julho, o que é que foi preparado?
JMS – Vai haver uma Missa que tem um caráter mais privado, na Capela do Rato,
seguida de um cortejo pela cidade. Depois o corpo de Sophia passará pela
Assembleia da República, a caminho do Panteão Nacional, onde às 19h00 - é bom
que as pessoas estejam um pouco antes - se vai proceder a uma cerimónia.
Nessa cerimónia terei a honra, o privilégio, de ser o orador oficial, por
escolha da família, e irão falar também o presidente da República e a
presidente da Assembleia da República.
AE – Que palavras é que vai dirigir às
pessoas, em honra de Sophia?
JMS – Com um poder de concisão que lhe era grato, ela preferia sempre o que era
conciso e claro, é uma das características dela e da poesia dela, vou tentar
resumir o que a sua vida, a sua obra. Falar um pouco dos princípios que a
inspiraram e da maneira admirável como ela os realizou.
Não esqueço a liberdade, a justiça, a poesia, acho que a lição dela é
fundamentalmente essa, a poesia, a liberdade e a justiça - são boas razões para
que os homens se possam olhar uns aos outros, olhos nos olhos, e ela
ensinou-nos isso.
AE – Haverá mais algum outro momento
especial que possa já ser desvendado antes das celebrações?
JMS - Sim, vão ser ouvidos alguns poemas ditos por ela, na voz gravada que temos
dela, vamos ter música e uma coisa extraordinária numa cerimónia desta, vamos
ter bailado.
A Companhia Nacional de Bailado vai interpretar duas peças, porque o
bailado, a dança, atravessaram toda a vida e obra de Sophia.
As palavras da dança aparecem na sua poesia do último ao primeiro poema.
Por exemplo, um excerto de um bailado que vai ser lá lançado é o Lago dos
Cisnes, e há uma carta de Sophia para a mãe, quando penso que nos anos 50 viu o
Lago dos Cisnes, e ela fala maravilhada com o que viu.
Portanto há essa memória, as cerimónias de entrada no Panteão não são
cerimónias fúnebres, são de alguma maneira uma ressurreição simbólica.
De alguma maneira, o Panteão é o reconhecimento que a morte não prevaleceu
contra aquelas pessoas, que elas estão vivas pelo seu simbolismo, pelo seu exemplo,
pelo legado que nos deixaram, e no caso de Sophia, por maioria de razão ainda,
pela sua obra.
Os grandes poetas não morrem, porque continuam a viver sempre que abrimos
um livro e lemos o que eles nos deixaram ou escreveram para podermos ler.
Sophia está viva por todas essas razões, pela memória que temos dela, pelo
legado exemplar que nos deixou e por essa obra extraordinária que vai desde os
contos, histórias para crianças até a ensaios de uma inteligência
extraordinária. Mas sobretudo a grande poesia que nos deixou, em que ela fala
do universo, dos atos do quotidiano, dos combates políticos, fala de outros
escritores, da maçã que a deslumbrou quando viu uma manhã, fala de tudo daquela
maneira absolutamente extraordinária que era a dela.
AE – Nestes dias que antecedem a cerimónia
no Panteão, tem-se lembrado de alguns momentos que partilhou com Sophia?
JMS – Sim, tenho-me lembrado de algumas vezes que estive lá em casa com ela, que
lanchei com ela, que conversei, as viagens que fiz. Eu tive funções na Presidência
da República durante 20 anos, era assessor cultural, fazia a ligação com os
escritores, intelectuais, com os artistas, e portanto falava frequentemente com
Sophia.
Acompanhei-a em muitas viagens que fez, a convite quer do presidente Mário
Soares quer depois do presidente Jorge Sampaio, e há de facto memórias
absolutamente extraordinárias.
A maneira como ela olhava as coisas, os comentários que fazia, a graça que
tinha - era uma pessoa que tinha uma grande graça - as histórias que contava
com uma grande ironia.
E isso fazia da Sophia ao mesmo tempo, como todas as personalidades com a
dimensão dela, uma figura transparente e ao mesmo tempo misteriosa, havia
sempre qualquer coisa nela que nos surpreendia.
AE – Que histórias peculiares é que guarda
sobre ela?
JMS - Um dia o presidente Mário Soares estava em vésperas de partir para uma
visita de Estado muito importante e estávamos a preparar a tradução dos
discursos que iam ser feitos nos vários acontecimentos dessa vida, coisa que é
sempre feita sob uma grande pressão. Um presidente tem sempre muito que fazer e
normalmente já escreve mesmo sobre a hora e depois revê e depois é preciso
mandar aquilo para tradução, para que quando se parta esteja já tudo bem
organizado.
Estamos num dia desses, eu entrei no gabinete e percebi que o presidente
Mário Soares estava ao telefone com a Sophia. O assunto era uma empregada
doméstica da Sophia, que tinha saído por qualquer razão, e a Sophia estava um
pouco atrapalhada porque não tinha empregada e ela não se orientava muito bem
nas coisas domésticas.
E eu ouvi o presidente Mário Soares dizer – ó Sophia, eu vou tratar do
assunto – não podemos esquecer que eram amigos e que tinham uma convivência,
uma amizade e uma intimidade de muitos anos. Desligou o telefone e quando nós
insistimos com as traduções ele disse: Não, não, agora vou ter de arranjar
primeiro aqui uma solução para o problema doméstico da Sophia.
Isto é mais importante do que tudo o resto, porque ela diz-me que enquanto
não tiver este problema resolvido, ela não escreve. E mais importante que tudo
é que ela escreva, o meu dever como presidente da República é resolver este
problema, dizia.
AE – E o que é que diria Sophia nos dias
de hoje?
JMS – Continuaria a dizer o que disse, que o mundo em que vivemos não é um mundo
justo, tornou-se até mais injusto do que já foi.
E mesmo a própria liberdade que ela cantou naquele poema maravilhoso do 25
de abril, a maneira como ela conta como esse poema lhe surgiu é uma história
também extraordinária.
Ela diz que a despertaram no meio da noite e lhe disseram – há uma
revolução na rua – e ela foi ouvir rádio.
Sophia tinha o rádio numa divisão da casa que tinha uns vidros que davam
para o jardim, na Travessa das Mónicas. Ela ficou colada ao rádio a ouvir a
evolução da revolução, a perceber também por telefone, como é que a revolução
se ia construindo e tornado vitoriosa. À medida que isto se foi passando, que
as horas foram passando, a noite foi dando lugar ao dia.
Daí ela no poema falar – “emergimos da noite e do silêncio”. E ela, num
desses testemunhos, liga isto à Páscoa que tinha acontecido poucos dias antes
na semana anterior à revolução.
Sophia diz que esta passagem da noite ao dia, das trevas à luz, foi para si
uma nova Páscoa, como um milagre que Portugal viveu nas ruas, naqueles
momentos. Esta é também uma memória extraordinária, que se percebe como os
poemas de Sophia nunca eram qualquer coisa que não fosse autenticidade em
estado puro.
AE – Portanto as palavras de Sophia nas
décadas de 60, 70, continuam a fazer sentido hoje?
JMS – Acho que continuam a fazer muito sentido, porque ela faz uma espécie de
ligação de todos os tempos e de todas as figuras. Ela tem um poema, por
exemplo, dedicado a Catarina Eufémia em que tira tudo o que depois foi,
digamos, cliché ideológico sobre essa figura, restituindo-lhe uma espécie de
pureza e nudeza inicial.
Ela liga-a uma grande figura que admirava extraordinariamente, Antígona,
que era a mulher que clamava sempre por justiça e que achava que havia uma
justiça e um direito que se podia impor à própria lei. E isso é uma lição muito
importante para o nosso tempo.
Eu gostaria ainda de dizer uma frase, fazendo uma citação dela, que diz
assim: “É costume dizer só aos pobres portugueses: Tenham paciência. Eu acho
que devíamos dizer: Não tenham paciência”.
E isso é extraordinário.
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