quarta-feira, março 05, 2008

OS MEUS BONS FANTASMAS
Os anos passam e a gente começa a poder olhar para trás. Neste pensar às “arrecuas”, fogem muitas coisas que na altura foram importantes, e sem saber como, começamos a recordar outras que estão guardadas no fundo de nós mesmos com amarras invisíveis que nunca mais nos largam.
De entre muitas coisas que não esquecemos, a Morte é uma delas. A morte de um pai ou de uma mãe. De um avô ou de uma avó. De um amigo ou amiga. De uma pessoa conhecida. Todos passámos por mortes que nos marcaram ao longo da vida. Também eu tenho mortes que me marcaram e que nunca consegui digerir. o Que ainda hoje recordo. Sobretudo porque foram mortes muito estúpidas. Mortes que nos colocam à prova por não fazerem sentido nenhum.

Eu ainda andava na escola primária. A minha mãe ou a minha avó mandaram-me comprar uma quarta de café ao Aníbal da Cooperativa. Quando cheguei à Rua Garrett, junto à antiga sapataria R. Costa, um grande movimento de pessoas indiciava que alguma coisa se tinha passado. Do alto do prédio de três pisos que ainda lá se encontra, tinha caído um vaso que caíu sobre a cabeça de uma criança da minha idade matando-a de imediato. A imagem dessa criança caída no chão, ainda hoje está na minha memória.

O filho mais novo do Chalica (o tal da célebre frase), trabalhava na oficina do meu pai. Eu tinha nessa altura uns 13/14 anos. Ele não teria mais anos que eu, e era um miúdo com uma vida extraordinária. Uma força da natureza. Um dia adoeceu com uma gripe ou com anginas, já não me recordo. O que é certo é que passado pouco tempo lhe descobriram uma leucemia. Passado pouco tempo morreu. Tenho gravada em mim essa morte fora de tempo.

Eu tinha uns 18 anos. Uma noite a brutal notícia chegou a Peniche. O Mário, o neto do Josué padeiro, tinha morrido num acidente de automóvel quando se dirigia para casa a passar o fim-de-semana. O Mário era um rapaz que nos tocava a todos com a sua boa disposição. Para todos os que o conheciam ele não podia estar naquela estrada àquela hora. A Morte ia encontrar-se com outra pessoa. Não vejo ainda hoje a mãe do Mário, sem me recordar dele. Não passo junto à porta da antiga padaria, sem pensar que ele a todo o momento pode sair por aquela porta.

Eu era professor na Escola Técnica de Alcobaça. Telefonaram-me para a Escola. O Carlos Laranjeira tinha morrido num acidente. O Carlos era uma referência para todos nós. Era o aluno mais brilhante que conheci até hoje a Matemática. Os professores davam-nos um problema para resolver e ainda nós não tínhamos começado, e já ele por puro cálculo mental o tinha resolvido. O Carlos Laranjeira optou por ir trabalhar com o pai em vez de continuar a estudar. A Igreja de S. Pedro foi pequena para acolher todos quantos o quiseram acompanhar. Ainda hoje me sinto revoltado com o seu desaparecimento.

Recordo estes meus conhecidos e amigos que se foram desta vida descontentes. Porque tudo isto se passou há mais de 30 anos e ainda hoje todos permanecem vivos no meu espírito. O tempo não os apagou da minha memória, vá-se lá saber porquê. É claro que recordo muitos outros. Mas tenho sempre transportado estes comigo, com ternura e amizade. Aprendi a viver com eles. São os meus bons fantasmas.

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