quinta-feira, abril 19, 2012

TESTAMENTO

Neste deambular de reformado meio eremita que levo, vou escrevendo, ouvindo música, lendo jornais e livros, vou-me aproximando de todos aqueles que de uma forma outra me atingem com a sua música, com o seu cato, com as suas palavras.
Sou presa fácil do relampejar brilhante que certos homens e mulheres receberam como dádiva, rompendo couraças por mais espessas que sejam e que de um momento para o outro nos tornam mais ricos, mais serenos e mais sábios.
Assim me aconteceu por acaso quando um dia destes li em qualquer lado, ou ouvi num programa qualquer da RTP2, uns excertos de um livro de um dos grandes poetas portugueses a quem infelizmente por razões espúrias não prestamos a devida atenção e não prestamos a devida vénia.
O livro em questão tem o duplo título “TESTAMENTO DE VGM/LE TESTAMENT DE VGM” escrito por Vasco da Graça Moura, ao correr da pena e em celebração dos seus 60 anos. O livro foi escrito em 2001 e publicado pelas edições ASA nesse ano. Lamentavelmente para mim só agora e um pouco por acidente o conheci e já o reli inúmeras vezes. Tem versos que são como bofetadas para todos os que têm certezas e têm uma visão do mundo estreita e convencional.
Para me redimir do pecado de tão tarde o ter lido trago aqui alguns dos seus versos. Alguns mais picarescos com o objetivo claro de despertar a vossa atenção e interesse em comprá-lo. Leiam-no até ao fim. Quando muito (e compreendo isso muito bem) saltem por cima da tradução em francês destes versos. Mas não percam a explicação ao livro dada pelo autor no final.

“TESTAMENTO DE VGM”
1.
no ano em sou duplo trintão,
tempo de ver-me sem lisonja
mas sem temor, sem contrição,
tempo de não passar a esponja,
nem de soprar mesmo de longe a
chama em que ardeu o meu estilo,
nem de glosar motes de monja,
nem de guardar de mim sigilo,

3.
sendo em política incorrecto,
deram-me amor, literatura,
algum suor, algum afecto
e meias-tintas de amargura,
alguma sombra mais escura,
algum mais fundo sentimento,
e achando assim azada a altura
para fazer um testamento,

12.
mas qual será o meu critério
para dizer dos meus amigos
que hão-de levar-me ao cemitério
para inscrever-me entre os jazigos?
há um melhor nestes artigos
que é das regras da experiência:
dizer-lhes tudo, até perigos,
sem recear inconfidência.

13.
aos inimigos (pura perda
de tempo ouvi-los a rugir-me)
a esses deixo toda a merda
com que quiseram atingir-me
e ao deixá-la digo a rir-me
“comei-a toda agora a cru,
que a digestão vos seja firme
e ao fim lambei o próprio cú”.

15.
não creio em deus, não me atingiram
seus metafísicos engodos.
no homem que sou evoluíram
peixes, macacos, algas, lodos,
celtas, judeus, romanos, godos,
mas recebi, por formação,
os sacramentos quase todos
e só me falta a extrema-unção.

16.
fiz boas, más, neutras acções
e fui leal, mesmo, acreditem,
com muita gente sem colhões.
citei autores, pois que me citem,
ou me distorçam, ou crocitem,
me esburguem todo em fim de festa,
mas acrescento mais um item
e nada deixo a quem não presta.

20.
pois num país sempre a dormir
porque não hei-de em qualquer canto
deixar-me estar antes de abrir
da doce aurora o róseo manto?
se cada um só quer ver quanto
ressona mais do que o vizinho,
eu sendo assim, não me levanto:
vai portugal por mau caminho.

24.
“- terceira idade”, digo e brinco,
sem ter poção nem amuleto
que me devolva aos trita e cinco
e reestofe o esqueleto.
outros fariam um soneto
de hora final quando a mão treme,
eu escrevi este folheto
e assinei-o vgm.
          Vasco Graça Moura

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