sábado, junho 19, 2010

JOSÉ SARAMAGO
(1922-2010) O lugar é o mesmo, mas o presente mudou. Caim tem diante dos olhos a cidade de Jericó, onde, por razões de segurança militar, não lhe haviam permitido que entrasse. Espera-se a todo o momento o assalto do exército de Josué e, por mais que Caim tivesse jurado que não era israelita, negaram-lhe o acesso, sobretudo porque não teve nenhuma resposta satisfatória para dar quando lhe perguntaram, Que és então se não és israelita. No nascimento de Caim, israelitas era coisa que ainda não havia e, quando, muito mais tarde, passaram a existir, com as desastrosas consequências já por demais conhecidas, os recenseamentos celebrados deixaram de fora a família de Adão. Caim não era israelita, mas tão pouco era hitita, ou pereceu, ou jebeu, ou jesubeu.. Veio a salvá-lo desta indefinição identitária um alveitar do exército de Josué que se tomou de amores pelo jumento de Caim. Boa peça tens aí, disse, Anda comigo desde que deixei a terra de nod e nunca me falhou, Pois se assim é, se estás de acordo, contrato-te como meu ajudante pela comida, com a condição de me deixares montar o teu burro de vez em quando. A Caim pareceu-lhe razoável o negócio, mas ainda objectou, E depois, Depois quê, perguntou o outro, Quando Jericó cair, Homem, Jericó é só o princípio, o que vem aí é uma longa guerra de conquista em que os alveitares não serão menos necessários que os soldados.
In “Caim” – Ed. Caminho (Págs 115 e 116)

Novembro de 2008, Dia 18
Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certoque procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não é só finível como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…
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