segunda-feira, setembro 09, 2013

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Fui ao Google procurar informação sobre um antigo colega meu do IIL, o Álvaro Pato. E por isso fui encontrar o Blog de José do Carmo Francisco, "Transporte Sentimental", onde li um texto que me maravilhou por me sentir próximo de muitas das situações nele descritas. Trata-se de um texto sobre um livro de Carlos Pato, que morreu às mãos da PIDE em 1950. Vou transcrever esse post na íntegra porque o quero sentir colado para sempre aos meus próprios sentimentos:
 
Quarta-feira, 05.09.12

a propósito de «Alguns Contos»

Dissertação à volta de um prefácio de Alves Redol num livro de contos Carlos Pato ou o homem que trazia o futuro no coração «Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar» - aprendi esta frase e esta ideia com o escritor Dinis Machado. Um pouco como aquele obscuro jogador brasileiro que dizia: «Não há golos feios, feio é não fazer golos». Dou início a esta abordagem do prefácio de Alves Redol ao livro de contos de Carlos Pato com um poema meu lido em Vila Franca de Xira numa homenagem ao malogrado escritor em 2010. Vamos ao poema: Fala de Carlos Pato a Alves Redol 60 anos depois Não morri. Sei que vai sair um pequeno livro com os meus três contos por si guardados. Em Vila Franca pouca gente sabe do assunto mas em breve esse livro de contos vai esgotar. Continuo nas histórias breves que escrevi e no seu pequeno prefácio onde me recorda. Sou o Bairro, sou a Charneca, sou a Lezíria e os sonhos dos meus dois filhos por sonhar. Não morri. Continuo no olhar dos meus filhos Clara bebé e João Carlos que não cheguei a ver. No olhar e nos sonhos por mim transmitidos entre o rio de Santa Sofia e o Largo do Serrado. Ainda hoje, tantos anos depois, sobeja azeite no aroma intenso que se espalha pelas ruas. Vem das várias carroças, das raras camionetas das ceiras onde as azeitonas foram prensadas. Não morri. Aprendeu comigo a ler e a escrever o chauffeur de praça que levou Clara a Peniche. Meu irmão Octávio tinha então visitas breves e a viagem era tão longa por estradas velhas. Não queria já receber o dinheiro esse rapaz mas Clara insistiu sempre pelo pagamento. Também lhe ensinei à noite a não misturar os seus deveres e as influências sentimentais. Não morri. No Bairro, na Charneca e na Lezíria vi mulheres que não tinham tempo para cantar. Os sonhos dos engraxadores na estação da CP. entram no meu conto breve do livro pequeno. Todos os outros protagonistas saem de manhã e vendem o seu trabalho no campo à semana. O vento pampeiro penetra veloz entre as telhas e sacode o sono leve dos ranchos dos gaibéus. Não morri. Nas ruas escuras da Bica do Chinelo corre ainda hoje um forte rumor de esperança. Passam cavaleiros a caminho das Cachoeiras e não há ainda as camionetas para a Arruda. Gerações sucessivas trabalham uma memória que há nos prelos das tipografias clandestinas. No nome dos meus filhos Clara e João Carlos se multiplica o inventário dos meus sonhos.» Como todos sabemos a vida é um mistério e não um negócio. Ainda bem. Se fosse um negócio os ricos compravam a saúde sempre à procura de não morrer. Existe algo de misterioso na minha ligação afectiva a uma família à porta da qual passei quatro vezes por dia durante cinco anos lectivos. Foi o esplendor do acaso. Nasci em Santa Catarina, na Estremadura, algures entre Alcobaça e Caldas da Rainha e estou ligado ao Rio Tejo desde 1957 quando fui viver para o Montijo. Depois em 1961 fui para Vila Franca de Xira onde estudei na Escola Comercial e Industrial tendo sido colega de turma do Álvaro Pato, sobrinho de Carlos Pato. Tendo nascido em 1951, eu era uma criança em 1961 mas a morte violenta de Carlos Pato às mãos sujas de sangue da PIDE dez anos antes, ainda estava muito fresca na memória das gentes do Largo do Serrado, da Bica do Chinelo, de Santa Sofia e do Bairro do Bom Retiro. Dito isto e para me manter na verdade, devo acrescentar que ao tempo (1961-1966) eu não tinha a consciência da importância da obra de Alves Redol. O mesmo é dizer da obra de Carlos Pato que, pura e simplesmente, desconhecia. Só há muito pouco tempo descobri o pequeno livro editado em 1974 com três contos e um prefácio de Alves Redol. Essa descoberta surge como motivo à vista para uma crónica no jornal «Gazeta das Caldas» de 22 de Fevereiro de 2008. Na rubrica ESTRADA DE MACADAME o título da crónica foi «A Clarinha vinha de Santa Sofia a sorrir» «No passado dia 16-12-2007 o jornalista Adelino Gomes assinou na revista «Pública» uma curiosa reportagem que descreve o encontro de cinco «jovens» alunos, quarenta e cinco anos depois de terem sido colegas de turma na Escola Comercial e Industrial de Vila Franca de Xira. São eles Vidaúl Froes Ferreira, José Carlos Pereira Lilaia, Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, Arnaldo da Silva Ribeiro e este vosso humilde cronista. O primeiro fundou o MRPP, o segundo fundou o PRD, o terceiro só conheceu o pai (Octávio Pato) aos nove anos de idade, o quarto era o prometido poeta da turma e, por último, este vosso cronista, que tinha algum jeito para estas coisas e deu o seu melhor: chegou a director de um jornal de (parede…) que se chamava «Velas do Tejo». Tudo isto, embora não pareça, tem a ver com a Estrada de Macadame. Desde logo quando fui para o Montijo em 1957, a minha rua (Sacadura Cabral) também era de macadame. Depois, quando fui para Vila Franca de Xira em 1961, o Bairro do Bom Retiro não tinha asfalto nos pavimentos mas sim macadame. Era por essa estrada de macadame que passava a Clara Pato. Ela vinha de Santa Sofia para o Largo do Serrado onde vivia o seu avô João Floriano Baptista Pato e a sua avó Maria da Conceição Rodrigues. E o seu primo Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, meu colega de turma. Por artes mágicas dos meus amigos Ana e Joaquim (o Mundo é mesmo pequeno…) acabei por reencontrar em Janeiro de 2008 a Clara Pato que obviamente se lembrava de passar pelo Bairro do Bom Retiro, vinda de Santa Sofia, a caminho da casa do seu avô em Vila Franca de Xira. Ao mesmo tempo surgiu nas livrarias o volume «A história da PIDE» de Irene Pimentel, uma edição conjunta das editoras «Círculo de Leitores» e «Temas e Debates». Na página 392 lá está a referência à morte do pai da Clara, Carlos Pato. Vejamos: «Em 4 de Junho de 1950 morreu o jovem assalariado agrícola Alfredo Lima, assassinado por guardas da GNR em Alpiarça, no decorrer de uma greve por aumento das jornas. No mesmo mês morreu às mãos da PIDE Carlos Pato, do PCP, irmão de Octávio Pato. Segundo uma carta aberta publicada no Diário de Lisboa de 24 de Agosto de 1974, dizia-se que, detido em 28 de Maio de 1949, Carlos tinha morrido, aos 29 anos, na cadeia de Caxias, em 26 de Junho de 1950, de «um ataque cardíaco segundo o médico da cadeia.» Por seu turno, a mãe de Carlos Pato contou que, na primeira vez que visitara o filho, este dissera-lhe que o tinham torturado muito. Soubera-se depois que tinha estado 130 horas de «estátua» com os sapatos «todos rebentados devido a ter ficado muito inchado por causa das torturas». Carlos Pato morreu «em Caxias, na sala 7 do rés-do-chão onde estavam mais 14 presos» um dos quais contou posteriormente à família que, apesar de muitos detidos terem pedido assistência médica, esta não havia sido fornecida a tempo.» A Clarinha tinha 8 meses quando prenderam o pai, o irmão João Carlos nasceu 5 meses depois de o pai ter sido preso ou seja depois de 28-5-1949. Carlos Pato veio a morrer em 26-6-1950. Além de todos os sonhos pessoais e colectivos em suspenso ele deixou um pequeno livro de contos nas mãos de Alves Redol que o editou em 26-6-1951. É de facto espantosa a ligeireza de muita gente que anda pelos cargos políticos (autárquicos e não só) de hoje que se atreve a comparar a ASAE com a PIDE. É uma gente que não sabe nada de nada mas tem os microfones à frente do nariz. Mas isso agora é assunto para outra crónica, daqui por quinze dias.» Mais tarde em 7 de Março de 2008 publiquei uma segunda crónica no mesmo jornal. O título foi «Carlos Pato, um desses homens que traz o futuro no coração» «Preso em 28 de Maio de 1949, Carlos Pato veio a morrer na cadeia de Caxias em 26 de Junho de 1950, deixando órfãos dois filhos pequeninos, Maria Clara e João Carlos. O menino nascido em 4-12-1949 nunca foi sequer visto pelo pai. Este é o fio da meada da crónica anterior, quando recordei a memória da Clarinha a passar na estrada de macadame do Bairro do Bom Retiro, entre Santa Sofia e o Largo do Serrado. Consegui a fotocópia do livro «Alguns Contos» de Carlos Pato editado em 1974. O prefácio de Alves Redol, escrito para a edição de 1951 e aqui reproduzido, refere-se ao malogrado escritor nestes termos: «Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia». O livro contém apenas três contos como que a dar a ideia de que o autor, na sua brevíssima vida, ainda teve tempo de escrever uma história para cada uma das divisões do Ribatejo: Charneca, Lezíria e Bairro. O primeiro («Ao receber a jorna») tem como heroína Maria Alexandrina, trabalhadora rural que levas duas filhas para o campo: «A uma afagava-lhe o rosto e amamentava-a para lhe abafar o choro; à outra dava-lhe parte da sua ração.» Depois de uma semana de trabalho chega o dia de receber a jorna: «Uma cantou para que o tempo passasse; as outras ouviram, caladas.» A fala do patrão não engana sobre o sistema cultural falsamente cristão que regia a vida dos portugueses e onde não havia espaço para creches ou infantários: «olhem que lá no campo, ganham três mil e quinhentos e vocês, aqui no norte, quase ao pé de casa, alambazam-se com quatro mérreis.» O segundo conto («Valados») mostra que o campo não é só paisagem («Terra de campo, onde se desvanecem ilusões e se sepultam energias; o Tejo bom quando traz pão, mau quando o leva e não o dá») mas também lugar de luta: «Quando Riacho e os camaradas começaram a compreender a vida, uma união intrínseca os ligou para sempre. Foi assim que edificaram uma base com que lutam contra os homens e contra o Tejo traiçoeiro.» A falta de assistência médica é o drama em gente desta história. O terceiro conto («Graxas») fala de um grupo de miúdos que brinca no Tejo: «As roupas estavam escondidas e à guarda do Chico não viesse o Cabo do Mar e os surprezasse a tomar banho. Os corpos nus a galgarem para dentro da água como uma enfiada de rãs que de repente notasse gente.» Nesse grupo de engraxadores nem todos sonham com o campo; o Chico quer outro destino: «Quando for homem vou para a fábrica trabalhar com o meu pai. Hei-de usar fato de ganga e fumar superior.» Divididos entre o trabalho e o desporto, entre a Estação da CP e a aberta no Tejo onde nadam, eles são um elo na corrida de estafetas por um mundo melhor: «Têm uma mágoa profunda a residir no íntimo, como uma coisa enorme que faz parte dos seus órgãos – são os lamentos e as lutas dos seus parentes. Lamentos e lutas que se vieram depositar, juntos, nos corpos esguios dos graxas que trabalham e brincam no passeio da estação e na aberta do Lamas.» Também sonham e perguntam entre si («Quando virá o dia que a gente muda a vida?») para logo um deles responder: «Não vem longe, Chico!» Entre os apitos das fábricas e as palavras dos capatazes, o seu futuro vai ser rogar trabalho sem condições, até um dia. Estes três contos de 1949 são uma dolorosa descoberta hoje em 2008: Carlos Pato poderia ter sido um grande escritor. Há na tessitura dos seus contos a ampla respiração dum talento criador, um domínio perfeito da língua. A sua morte por enfarte depois de muitos dias de tortura é mais um crime da PIDE que, sem consciência, alguns pobres diabos da política hoje comparam à ASAE.» Do prefácio de Alves Redol que espero em boa-fé já estar disponível neste momento, numa edição mais cuidada do que a de 1974 que tenho apenas em fotocópia, quero apenas salientar as três citações de três grandes poetas portugueses do século XX. José Gomes Ferreira escreveu: «Volta-te e olha para a terra, / - a carne da tua sombra / de flores acesa./ Céu para quê? / O céu é para os que esperam / e tu morreste por uma certeza!» Carlos de Oliveira também escreveu: «Mais vivo porque sofreste / a morte não veio, foi-se. / A eternidade constrói-se / na beleza com que viveste». Sidónio Muralha escreveu por sua vez: «Largos versos irrompem do teu silêncio de granito / e tu vives inteiro em cada grito / tu que foste maior que todas as poesias». Uma vida breve e uma obra brevíssima mereceram esta concordância de um romancista e de três poetas portugueses. Afinal não é todos os dias que morre com 29 anos de idade um jovem escritor que traz o futuro no coração. E eu que passei quatro vezes por dia à porta da casa da sua família no Largo do Serrado em Vila Franca de Xira que hoje tem o nome de Largo Carlos Pato, apenas posso compor as peças do puzzle sentimental e deixar-me envolver pela emoção.
publicado por José do Carmo Francisco às 15:29
 
 

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