quinta-feira, março 22, 2012

MARIA DA BOA VIAGEM
De vez em quando revejo-a. À Maria da Boa Viagem, que me cumprimenta sempre com os olhos rasos de amizade e com aquela sua voz característica. Como é que eu a posso descrever para que me percebam. Vivia n` minha rua. A dois passos de mim. Morava numa casa com um quintal, onde também morava a mãe do Quinzico e ele próprio. A Maria da Boa Viagem era daquelas raparigas que enche uma rua. De alegria e de esperança. Jogava à “Banca”, mas também dava uma perninha no futebol. Ninguém que se metesse com ela ia sem troco. Fosse verbal ou ao estalo. E quando a mão falhava, havia sempre por perto uma pedra ou um bocado de pau.
A Maria da Boa Viagem é uma memória do nosso passado colectivo, quando a bola de trapos ou feita de bexiga de porco era rainha das ruas. E fugíamos como o “diabo da cruz” do Coelho e do Carocé (policiais dos velhos tempos).
Quando os médões eram cenário de jogos de capa e espada. E as ruas eram poucas para os jogos de polícias e ladrões. Quando os jogos eram no Alto da Vela na adivinhação na linha do horizonte, do barco que se aproximava, pela forma mais ou menos bojuda, pelo tipo do mastro ou até pela maneira como se fazia às ondas e as cortava.
A rua nesse tempo era uma escola de criatividade, onde o jogo do “virinhas” ou do “botão” eram uma preciosidade no desenvolvimento da “psicomotricidade fina”. Nome esquisito que os técnicos inventaram para distinguir os espertos e ladinos dos que perdiam sempre botões e “abafadores”. Como eu. Tempo das corridas com carros de cana e de rodas de cortiça. Tempo dos jogos de “Batos”, aqueles seixos redondos e lisos da praia do Porto de Areia que a Maria da Boa Vigem e as outras raparigas jogavam com maestria e com tal velocidade que nos punham os olhos tortos.
A rua nesse tempo era o império das crianças. Nela todos aprendemos melhor ou pior a defendermo-nos, a sermos inventivos e desenrascados. E protegidos. Havia sempre alguém por perto que nos conhecia e aos nossos Pais e sabíamos que os excessos chegariam sempre ao seu conhecimento. A rua era um tempo em que as palavras vizinho ou vizinha fazia sentido, porque era sinónimo de solidariedade e de sociabilização (palavrão de que só depois aprendemos o significado).
Na rua a Maria da Boa Viagem era rainha. Ou princesa dada a idade. Era uma líder. Era uma referência.
E hoje ao rever a Maria da Boa Viagem que não sei onde mora, todo esse tempo me veio à memória. Gritamos um para o outro a alegria de nos revermos. Dois beijos da velha amizade foram trocados. Ela e eu falámos das nossas idades. Do meu irmão que ela nunca mais chegou a ver. Falamos das varizes dela e da minha “barriga de mestre”. Despedimo-nos sem garantias de nos vermos nos próximos tempos. Mas com a certeza de que a nossa RUA mereceu a pena. Até lá, até sempre Maria da Boa Viagem. Nome de santa que não foste e de Festa que foste.
Menina e Mulher do meu tempo. E da minha rua. Que tem tanto para contar. Assim vá tendo eu memória e talento para poder recordar.

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