quinta-feira, setembro 22, 2011

O HOMEM QUE SABIA DEMAIS
O meu pai era um homem de muitas histórias. Desde logo as suas próprias histórias. Histórias construídas numa vida de trabalho e de estudo. Histórias de uma época em que contar histórias era construir um saber de experiências feitas, contadas de boca em boca, de pais para filhos e de avós para netos. Por vezes as histórias eram tantas vezes contadas, que quem contava já não sabia onde a realidade se confundia com a fantasia, na velha dicotomia de que, “quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto).
Depois também havia as histórias de quem ia até à cerca do Zé Gago, à oficina do Mestre Horácio, para ali meter dois dedos de conversa. Juntavam-se no Verão emigrantes saudosos e aqueles que nunca daqui saíram, para os reencontros amigos todos os anos repetidos. O Joaquim Pinto, mais o Jaquim Gordo seu secretário e pau para toda a obra. O Snr. Acelino, para quem havia uma cadeira de braços, estrategicamente colocada no centro da Oficina, ou não fosse ele o decano dos conversadores, e por vezes o Henrique Coutinho em épocas de retocar o velho Renault. O António Serafim e o João Cândido. Dos que vinham de fora, eram presenças de sempre o Lio, até a morte o levar num estúpido acidente contra uma árvore que já não existe. Depois o Rui Gonçalves, o Renato, O Daniel e tantos e tantos outros que da oficina fizeram “consulado de Verão”.
Quantas vezes a oficina ficava entregue aos amigos que conversavam, enquanto o meu ia experimentar um carro ou comprar uns parafusos ao Joaquim Santos ou aos Mamedes.
A tertúlia continuava até à hora de almoço, estendia-se pelo Café Aviz e continuava tarde fora. Dia após dia até a morte os ir separando e tornando a juntar uns e outros onde quer que eles estejam.
Recordo muitas histórias contadas, que me comoviam umas e faziam rir outras. De entre muitas delas recordo uma cena passada com um turista que aqui veio e que levou para a sua terra alguma coisa que contar.
Era um senhor dos seus quarenta e tais anos, que tinha um problema qualquer no carro. Alguém lhe indicou a oficina do meu pai. Ele lá foi e perguntou quem era o snr. Horácio Costa. O meu pai apresentou-se e o homem lá contou a avaria. Aberto capot e pondo o carro a trabalhar, o meu pai foi ouvindo o motor tentando pressentir o que de errado haveria. Enquanto isso, o homem não se calava, repetindo sem cessar: -Não será disto, ou daquilo, ou daqueloutro...
E se for... e não será...
A certa altura, prevendo a tempestade começaram a calar-se as vozes dos conversadores daquele dia. Conhecendo o meu pai como conheciam sabiam que só podia avizinhar-se mau tempo. Fez-se um silêncio de morte só interrompido pela voz do fala-barato que continuava a dar os seus palpites.
Até que o meu pai parou com o que estava a fazer, desligou o motor do carro, fechou o capot e perante a perplexidade do “chico esperto” apontou-lhe o interior da oficina e disse: - Olhe! Sabendo tanta coisa sobre avarias como sabe, tem aí dentro a oficina mais apetrechada de ferramentas que existe em Peniche. Arranje você o carro!
E assim se construiu mais uma história de Verão, na oficina do Mestre Horácio. Assim surgem os mitos urbanos.

Sem comentários: