...SER “PUTO” HOJE...
Ser miúdo hoje (ou miúda) é uma maravilha. Desde logo quando se nasce começa-se por grandes passeios em “altos” carrinhos, alguns com grande capotas, com sistemas e acessórios só comparáveis aos automóveis topo de gama.
Depois os brinquedos. Alguns tão avançados tecnicamente que em muitos casos são os pais que acabam por brincar com eles. Depois as roupas e os sapatinhos de marca. O Jardim Escola com os seus cantinhos de brincar. As festas do Dia da Criança, do Carnaval, do Natal, do dia do Pescador. Do final de ano lectivo. As festas de finalistas que hoje percorrem toda a Escola, desde o Pré Escolar, até ao Secundário. Educadoras e Professores devidamente habilitados. permitem o acesso ao saber e à experimentação, tornando possível que as nossas crianças possam vir a ser homens e mulheres mais sábios e mais lúcidos.
Mas há coisas que as crianças de hoje nunca saberão e que conduziram à formação de muito homem e mulher desta terra.
Nunca saberão por exemplo o que é jogar à bola com uma bexiga de porco conseguida no matadouro à custa de muitos pedidos e de muito apelo ao bom coração de quem lá trabalhava. E depois ir para o campo do Zé Seco, ou para o juncal hoje apelidado de Prageira.
Não saberão o que é fazer corridas com carrinhos de cana e rodas de bóias de cortiça enfeitadas com caricas, quais bólides de fórmula 1. Não saberão o que era fazer corridas com traineiras feitas de madeira e lata no fosso das muralhas, quando o fosso não era ainda um foco de contaminação.
E jogar ao “botão” (com as vaidosas a valerem 5 ou mais botões dos outros e a minha mãe a ralhar comigo porque eu roubava os aviamentos das freguesas da costura) e jogar ao “virinhas” com os bonecos dos jogadores da “bola” embrulhados em rebuçados a 1 tostão cada um.
E jogar aos polícias e ladrões ma hora de escurecer. E fazer jogos de capa e espada com canas nos medões de Peniche de Baixo.
E as meninas com bonecas de trapo autênticas maravilhas de arte e amor. E elas a jogarem ao “prego” e aos “Batos”, pedras redondas apanhadas no Quebrado ou na praia do Porto d’ Areia. O jogo da Banca.
Quase todos estes jogos e brincadeiras tinham a sua época e tempo próprios, o tempo da Escola determinava uns. As estações do ano ou as festas religiosas determinavam outros.
Não me esqueço do “pré-escolar” (?) do meu tempo. Uma casa de habitação mais ou menos solarenga.
Uns banquinhos de madeira. Por vezes umas almofadas para as rendas de bilros. Uma “pedra” e uma “pena”. E era todo o equipamento pedagógico-didáctico. Entre 6 a uma dúzia de meninos e meninas num compartimento de 4 por 4 metros e às vezes nem tanto. Aprendia-se a rezar, a cantar o Hino Nacional, mais umas quantas cantigas, uns desenhos e, era tudo.
Surgiu assim a escola da D. Conceição, mulher do Sr. Pacífico sacristão das igrejas de Peniche, na Rua Salvador Franco, numa casa típica de Peniche que deu hoje lugar a mais um bloco de cimento armado sem graça nem maneira. A escola da “surda” no largo Bispo Mariana e irmã de uma das primeiras cabeleireiras de Peniche. A escola da Maria “Mechas” na R. De S. Vicente em Peniche de Cima, que nestas coisas não convinha misturar pessoal de Peniche de Cima com Peniche de Baixo pois a mistura podia ser explosiva.
E no Largo de S. Paulo as duas irmãs ( a Angélica e a Maria Trapoilas) que ao mesmo tempo que mantinham a sua “Escola” iam desenvolvendo a aprendizagem das rendas de Bilros. A escola da Joaninha Melo talvez das mais famosas nesse tempo sem TV e em que os rádios não abundavam. Um tempo em que os adultos e as crianças se aborreciam de tédio uns aos outros e onde tinha naturalmente de florescer a criatividade e o engenho das crianças para brincarem e se desenvolverem.
Tempos em que andar de bicicleta sem luz era crime e em que jogar à bola na rua dava lugar a fugas sem fim pelas ruas e ruelas à frente do Sr. Frontim, do Sr. Coelho (polícias da altura), para não ficar sem a bola ou levar um tabefe.
Se recordo os tempos de há 50/60 anos atrás em oposição aos de hoje, é só porque quero que esses tempos não se percam na memória dos homens e mulheres da minha terra, e sobretudo porque quero que as crianças se apercebam dos bens que hoje desfrutam para que os possam apreciar melhor.
Dar qualidade à vida e aos dons que ela nos concede é o melhor tributo que podemos prestar à nossa existência.
2 comentários:
Olá Zé Maria,
É por causa de crónicas como esta que eu acho necessário editares um livro com todos estes apontamentos.
Que boa memória, se não fosses tu a recordar eu já tinha esquecido tudo isto.
Fico sempre emocionada quando as leio.
Obrigada, Belmira Estrela Camarão
Boas,
Sou relativamente novo (33 anos), mas ainda brinquei muito ao peão, às corridas de caricas, ao berlinde, à bola pelos campos "inventados" em Peniche, como o "merda à unha".... sei lá... mas o que retenho muito na memória e que acho uma pena ter-se perdido, pois tava-me gozo assistir, e muitas vezes o fiz com a minha avó, era ver novos e velhos a jogar ao jogo da banca no campo da republica!!! É uma pena, "a tradição já não é o que era"!!!
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