REFEIÇÃO DE FIM DE SEMANA
(Para ler e comer)
RUY BELLO
(27 de Fevereiro de 1933/8 de Agosto de 1978)
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa. Licenciado em Direito Canónico pela Pontifícia Universidade de S. Tomás de Aquino em Roma. Doutoramento em Direito Canónico. Licenciado em Filologia Românica
Professor e autor de uma vasta obra de ensaios, crítica e poesia. Só em 1991 é reconhecido oficialmente o seu contributo para a língua e cultura portuguesa, sendo condecorado a título póstumo com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.
Falta-me o talento e a arte para falar do Poeta. Outros talentosos poetas portugueses já o fizeram magistralmente. Recordo entre outros Joaquim Manuel Magalhães outro poeta que aqui passou, quando Peniche não era esta amálgama de cimento armado. Do homem recordo as suas incursões por Peniche e Consolação. Recordo-me de o ver nos idos de 60 em amena cavaqueira com o Zé Rosa, encostado às estantes da Húmus.
Tornou-se um apaixonado por esta terra. Pelo nosso mar e falésias. O longe e a distância são o seu alimento. Aqui escreve muitos dos seus poemas dando largas à expressão maior que o mar encerra.
Em 1973 publicou o livro “TRANSPORTE NO TEMPO” de que faz parte o Poema que hoje aqui publico e que, nos torna a todos (os penicheiros) mesmo sem talvez o merecermos, parte indissociável da Obra Literária de Ruy Bello.
NAU DOS CORVOS
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea do cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira batista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão desta tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o marE só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
(Para ler e comer)
RUY BELLO
(27 de Fevereiro de 1933/8 de Agosto de 1978)
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa. Licenciado em Direito Canónico pela Pontifícia Universidade de S. Tomás de Aquino em Roma. Doutoramento em Direito Canónico. Licenciado em Filologia Românica
Professor e autor de uma vasta obra de ensaios, crítica e poesia. Só em 1991 é reconhecido oficialmente o seu contributo para a língua e cultura portuguesa, sendo condecorado a título póstumo com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.
Falta-me o talento e a arte para falar do Poeta. Outros talentosos poetas portugueses já o fizeram magistralmente. Recordo entre outros Joaquim Manuel Magalhães outro poeta que aqui passou, quando Peniche não era esta amálgama de cimento armado. Do homem recordo as suas incursões por Peniche e Consolação. Recordo-me de o ver nos idos de 60 em amena cavaqueira com o Zé Rosa, encostado às estantes da Húmus.
Tornou-se um apaixonado por esta terra. Pelo nosso mar e falésias. O longe e a distância são o seu alimento. Aqui escreve muitos dos seus poemas dando largas à expressão maior que o mar encerra.
Em 1973 publicou o livro “TRANSPORTE NO TEMPO” de que faz parte o Poema que hoje aqui publico e que, nos torna a todos (os penicheiros) mesmo sem talvez o merecermos, parte indissociável da Obra Literária de Ruy Bello.
NAU DOS CORVOS
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea do cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira batista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão desta tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o marE só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
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