TU-QUE-O-DIGAS
O Taneta revisitou o passado uma tarde destas. Todos ficámos presos do colorido das imagens do tempo que todos os dias perdemos cada vez mais na nossa memória.
Acordámos no Visconde. Corremos no Campo-da-Torre que os barcos estão a chegar. E hoje é dia de ganhar dinheiro que em casa nem hão-de cheirar.
“Corre! Vem aí o Carreira esse desgraçado”. “Ti Charreta. Tá aqui um cabaz de charros”. “Ah! Ric filho vai pôr lá na loja. Mas na róbes nenhum”. E é só ela dar meia volta e o mesmo cabaz vai ser vendido três ou quatro vezes. “- Agora vamos comprar um maço de Três-Vintes. E vamos jogar à bola prá praia”.
No fim cansados de brincar, é correr até casa, apanhar um enxerto de porrada pela dinheiro da venda do peixe roubado que não chegou a entrar , e onde a mãe-fome o aguardava ansiosa.
Depois, deitado à porta ao sol quente do fim da tarde, é aguardar pelo cair da noite e o recomeço do ciclo da Ribeira. É altura de chamar o melhor enfermeiro de Peniche:
"- Tu-Que-o-Digas!!! E lá vem ele a abanar a cauda. Era o meu cão. Que se deitava ao meu lado e me lambia as “topadas”. Acreditem ou não, o Tu-Que-o-Digas era o cão mais conhecido de Peniche. Tinha um cuspo Abençoado. - Ferida lambida era ferida curada. E os meus pés descalços eram “chagas” todos os dias. Era o que me dava mais raiva nesse tempo. Era ver sapatos e eu não os poder ter. Menino que eu visse de sapatos, só se eu não pudesse é não lhe “arrebentava o focinho”. Era a minha vingança. E o meu ódio por quem andava calçado. Só comparável ao que eu gostava do Tu-Que-o-Digas.
As “topadas” cicatrizaram. O Tu-Que-o-Digas morreu. E o Táneta, hoje um pescador reformado, conta as suas histórias de há cinquenta anos atrás e sabe que já não são os pés descalços o que mais o magoa na memória do passado.
O que verdadeiramente o incomoda é que há tantos que perderam a memória. Da fome. Dos pés descalços. Do charro roubado. Dos maços de “Três Vintes” ou de “Provisórios”. Hoje tanta gente perdeu a memória. Só o Táneta é que tinha um cão para lhe lamber as feridas.
Perder a memória é hoje meio caminho andado para o sucesso. E porque o passado se está a perder, o presente não tem amarras que o projectem para o futuro. Os pais desejosos de apagar da sua memória um passado que aparentemente os humilha (a pretexto de não quererem que os filhos passem pelo mesmo). Os jovens debatem-se no imediatamente a querer e a satisfazer.
Em memória desses tempos, retomo uma proposta. Dar nome de rua ao
TU-QUE-O-DIGAS
Cão – Enfermeiro – Residiu no Visconde
Ao ver a lápide, haveremos de recordar que houve um tempo em que havia fome em Peniche. E que havia crianças descalças. Crianças que davam “topadas” nas pedras e que se feriam sem que houvesse um Centro de Saúde ou em casa o que quer que fosse para as tratar. Para não esquecer. E para que não se repita.
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